Eucanaã Ferraz mira a pedagogia do olhar

23/11/2016

“Gosto de coisar nas coisas.?

Desde garoto coisava comigo?

essa coisa curiosa:?

as coisas fazem cócegas nos nossos olhos!

 

Os olhos sabem de tudo.?

E ficam assim, refletindo, mudos,

matutando, coisando,?

cuidando do mundo.”

(Coisando)

 

Uma certa “pedagogia do olhar” permeia a poesia de Cada coisa, último livro de Eucanaã Ferraz. É que “as coisas fazem cócegas nos nossos olhos”, avisa um dos versos do poema Coisando, que integra um inventário de objetos, como anzol (“Para ele, o certo é ser torto”), folha em branco (“Peço licença para escrever sobre ela”) e guarda-chuva (“não guarda chuva”).

São versos e poemas que nos fazem ver, “põem ‘entre parênteses’ as coisas cotidianas e, é claro, a própria linguagem, a escrita, as palavras.”

Autor de Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos (2009), Palhaço macaco passarinho (2010), Água sim (2011) e Em cima daquela serra (2013), todos editados pela Companhia das Letrinhas, o poeta nega o rótulo “poesia para crianças”. Prefere dizer que é “poesia para todos” ou “livre”. “Os poemas que chegam a tal liberdade e abrangência precisam, portanto, ser mais ambiciosos que os outros”, diz Eucanaã.

Seu primeiro livro “censura livre” foi Poemas da Iara, publicado em 2008 pela Editora Língua Geral. Ele conta que relutou um pouco antes de se enveredar por esse caminho de uma poesia capaz de atingir também leitores em formação. “Eu me achava incapaz. E por muito tempo entendi que não estava mesmo apto para tanto”, diz o autor, que não simplifica para obter a abrangência de público.

“Toda poesia é exigente. Não facilito para as crianças. Facilitar, quando se trata de criação – e julgo que a poesia é a máxima realização disso –, é um erro. Quero ampliar em meu leitor sua capacidade de viver experiências por meio de palavras. Não importa que idade tenha.”

Para saber mais sobre o sexto livro do poeta, confira no bate-papo a seguir o que fala sobre a experiência da linguagem e os poemas museográficos que trazem um pouco de sua infância na década de 60.

Ator e diretor teatral, Stanislavski disse certa vez que “o teatro para crianças tem que ser igual ao adulto; só que melhor”. Defende o rótulo “poesia para crianças”? Se sim, como definiria tal poesia? Se não, qual a razão?

Prefiro talvez o rótulo “poesia para todos”, ou ainda, “livre” (termo de indicação de faixa etária usado nas classificações indicativas dos filmes). Ou seja, seria uma poesia para qualquer idade. Os poemas que chegam a tal liberdade e abrangência precisam, portanto, ser mais ambiciosos que os outros. Afinal, destinam-se não só aos leitores maduros. A criança, em diferentes faixas etárias, e os jovens têm universos de linguagem diferentes. A psicologia já se deteve sobre isso e chegou a resultados elucidativos. As experiências são, a princípio, diferentes. Ou, pelo menos, são vividas de modos específicos, de acordo com os seus “maquinismos” psíquicos. Mas a própria diferenciação entre criança e adulto precisaria ser vista, digamos assim, mais de perto. Quem é, por exemplo, a criança que atravessa o mar numa balsa de refugiados? Existencialmente, como situá-la? Quais as diferenças e semelhanças entre uma criança da classe média urbana de São Paulo e a criança das populações ribeirinhas da Ilha de Marajó? Especificidades culturais, sociais e uma gama enorme de experiências de vida são desconsideradas quando usamos categorias universais como “criança”, “jovem”, “adulto”. Gostaria de escrever uma poesia capaz de chegar a um leitor de qualquer idade. É o que tento fazer nos poemas de livros como Cada coisa.

 

Quando e como foi que você começou a escrever poesia para crianças? E o que o levou a continuar escrevendo para esse público?

Eu relutei um bocado até enveredar por um tipo de poema abrangente, capaz de chegar aos leitores em formação. Eu me achava incapaz. E por muito tempo entendi que não estava mesmo apto para tanto. Meu primeiro livro – vamos lá – “censura livre”, foi Poemas da Iara (2008). O resultado me satisfez e eu senti que era um campo de linguagem a experimentar, que suas exigências eram imensas, mas que eu poderia ir em diração a elas, aceitar os desafios. Quando publiquei Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos (2009), julguei que estava no caminho certo.

 

O que você busca despertar nas crianças com sua poesia? Quais os critérios, preocupações, exigências ao escrever para esse público?

Busco o mesmo que busco nos outros poemas: realizar uma experiência de linguagem na qual a liberdade é o valor máximo. Não quero ensinar bons modos. Não quero ser didático. Neste livro, sigo para uma espécie de pedagogia do olhar. Seus poemas fazer ver, põem “entre parênteses” as coisas cotidianas e, é claro, a própria linguagem, a escrita, as palavras. Estão lá, por exemplo, poemas que poderão, muitas vezes, parecer difíceis. Mas é sempre assim com os poemas de verdade: a comunicação direta e clara deve estar submetida à experimentação das potencialidades da língua. O resultado será um texto que exige atenção, disponibilidade de espírito, colaboração imaginativa, espírito livre. Se a criança não for um bom leitor, o poema simplesmente não se fará, não acontecerá na sua ampla gama de significados, virtualidades sonoras, rítmicas, escalas emotivas. Toda poesia é exigente. Não facilito para as crianças. Facilitar, quando se trata de criação – e julgo que a poesia é a máxima realização disso – é um erro. Quero ampliar em meu leitor sua capacidade de viver experiências por meio de palavras. Não importa que idade tenha.

 

Como foi o seu contato com a poesia na infância? O que leu? Essa leitura dos primeiros anos de vida o inspiraram de alguma forma? Tem alguma história saborosa para contar relacionada à infância/poesia?

Não li poemas para crianças quando era criança. O que me chegou na escola, se chegou, não me marcou. Assim, é como se não tivesse havido. Nem no universo familiar tive acesso a livros de poesia ou às narrativas. Quando me encontrei com os livros, estes eram já para adultos. Eu era um adolescente, ou nem isso, e me senti despertado para um mundo que me parecia mais interessante que tudo. Aquilo era um negócio que me pareceu curioso, estranho, bonito. Meus primeiros poetas foram Augusto dos Anjos, Cecília Meireles e Fernando Pessoa.

 

Cada coisa, seu mais recente lançamento, traz referências de uma infância de décadas passadas nas fotografias e nas ilustrações. Traz ali um pouco de seu tempo de menino? Ou qual a razão de um tom mais nostálgico?

Sim, Cada coisa é também um inventário de coisas que muitas vezes parecem antigas, tanto nos poemas quanto nas ilustrações. E, de certo modo, sim, aquele é o meu mundo, o mundo de alguém que nasceu em 1961. Não deixei de lado minhas vivências para me adaptar aos leitores (às “crianças” de hoje). Nenhum poeta faz isso quando escreve para adultos. Por que eu teria de fazê-lo para criar um mundo de total reconhecimento? Escrevi sobre o lápis, por exemplo, tratando-o como uma alta tecnologia. Preferi fazer um curto-circuito nos tempos passado e presente e num hipotético futuro. Há algo museográfico no livro, sem dúvida. Sua estrutura – em ordem alfabética, com os títulos quase sempre limitados a nomear a coisa-objeto – é um exercício de aproximação com as enciclopédias. E, a seu modo, faz uma atualização de imagens que eram modernas ainda ontem e que agora, sim, parecem datadas, remetendo às formas engendradas nas décadas iniciais do século XX, expandindo-se aos anos 1960 e 1970, por exemplo. Não quis, repito, fazer um livro no qual as crianças se reconhecessem inteiramente num universo considerado estritamente contemporâneo. Afinal, os meninos e as meninas que usam tablets e smartphones também usam o lápis, o clip, o caderno. Alguns – muitos – usam a moringa, a esteira, a rede. Quis também fugir de uma urbanidade estrita. Muitas imagens parecerão estranhas. Se quis fazer um livro estranho? Sim, sempre quero fazer livros estranhos, curiosos. O leitor tem que entrar no jogo.

 

Em Cada coisa, você trabalhou com Raul Loureiro nas ilustrações. Como se dá, nesta obra, a relação entre palavra e imagem? Como foi o processo criativo (entre texto e imagem)?

Eu e Raul fizemos tudo juntos. Raul é um gênio. Sua compreensão do espaço gráfico é uma coisa excepcional. Ele compreende e ama a folha de papel. Ele é um artista mesmo quando se limita a diagramar um livro. Propus que fizéssemos as ilustrações como um desafio para nós dois. Mais desafiante para mim, é claro. E tudo se deu de modo tranquilo, colaborativo, sem que possamos, hoje, identificar, com clareza, o que foi feito por cada um. Acho que levamos mais de um ano trabalhando intensamente nesse livro, criando, mexendo, mudando, desistindo. Usamos muito papel, cola, tesoura, mas também o computador. As imagens funcionam de diversos modos. As ilustrações – quase sempre colagens ou arranjos – não se limitam a ornamentar a página, como se a criança precisasse delas para entender os poemas. As imagens comentam livremente os poemas; outras vezes funcionam em si mesmas, como um texto independente, voltado para a mesma coisa/objeto; também há casos em que a diagramação é a própria ilustração, como no poema “Faca”, no qual uma listagem de nomes (tipos de faca) é disposta horizontalmente nas folhas, sugerindo a forma de uma faca.

 

Tem alguma história para contar sobre os objetos selecionados para seu inventário poético? Por que eles foram selecionados?

As coisas ali são as coisas que me rodeiam e que rodeiam o cotidiano da maior parte dos brasileiros. Pode ser um anel ou um cotonete. Uma xícara ou um avião. São objetos que escolhi sob motivações variadas. A principal: eles tinham que servir ao poema e o poema a eles. Eu teria que poder saber dizer algo sobre eles. Nem sempre isso aconteceu. Quando aconteceu: era o poema.

 

O livro é também um convite para a criança criar seu próprio inventário poético de objetos?

Sim! Eu adoraria que os poemas de Cada coisa despertassem nos meus leitores – e nos seus professores, amigos, familiares – o exercício da escrita em torno das mesmas e de outras coisas.

 

Diversos artistas bacanas (André da Loba, Jaguar, Yara Kono, Andrés Sandoval e, agora, Raul Loureiro) ilustraram seus livros de poesia para crianças. O que é a poesia da imagem?

É a poesia sem palavras. Muitas vezes nos referimos a algo – um objeto, um animal, uma paisagem, um acontecimento – como sendo poético. E não raro dizemos mesmo que tal coisa é um poema. Porque a poesia é também uma qualidade que reconhecemos nas coisas. A imagem tem sua poética própria, feita de linha, volume, cor, referindo-se direta ou indiretamente ao mundo real, visível. É o mundo refeito em formas novas, mundo reinventado com suas próprias leis, mundo imaginado, fruto da liberdade e da subjetividade. Sempre escolhi meus ilustradores em função dos livros. Tive a honra e a imensa alegria de somar à minha poesia a poesia deles. Sou muito grato a todos eles.

  

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