O universo transgressor de Beatrix Potter

22/03/2018

 

Pedro era um coelho levado. Mesmo quando a sua mãe lhe orientava expressamente para não entrar na horta de seu Severino, lá ia ele atravessar o portão e se alimentar das mais deliciosas cenouras, alfaces e rabanetes. A história, famosa no Reino Unido, embarcou em terras brasileiras com a criação da Companhia das Letrinhas, em 1992. Foi um dos primeiros títulos estrangeiros da editora, justamente pela potência da história, publicada em 1901, mas que ainda reverbera nas infâncias atuais.

E agora ainda mais. É que a partir do dia 22 de março as crianças brasileiras poderão acompanhar nas salas de cinema a história desse travesso coelho e de seus amigos animais: estreia no país a adaptação cinematográfica sob a direção de Will Gluck, com atuações de Rose Byrne no papel de Bia (personagem que encarna a autora dos contos, Beatrix Potter), Domhnall Gleeson como Thomas e Sam Neill como o seu Severino.

 

 

Inspirado no mais famoso conto de Beatrix Potter, o filme narra uma disputa entre o coelho e o novo dono da horta, Thomas, pela atenção e pelo carinho de Bia, que vive em uma casa vizinha. Numa mistura de animação e live action, o filme aborda questões contemporâneas, como a derrubada de muros e a capacidade de um convívio pacífico entre seres diferentes.

 

 

Afinal, quem foi Beatrix Potter?

Helen Beatrix Potter nasceu em Londres em 28 de julho de 1866. Desde muito pequena gostava de desenhar e fazia rascunhos de vários de seus bichinhos de estimação, que variavam entre coelhos, ratos, sapos, lagartos, cobras e um morcego. Seu animal de estimação favorito era um coelho, chamado Benjamin Bouncer. Ele gostava de torrada amanteigada e seguia Beatrix para todo canto.

Potter nunca foi à escola – tinha aulas em casa! Seus pais contrataram para a menina uma professora particular de arte, a Srta. Cameron. Despertada a paixão pelos desenhos, mais tarde somada ao amor pelos animais, nasceria então a autora aclamada mundialmente. Antes disso, no entanto, ela trabalhava como podia. Mesclava seus desenhos da natureza com ilustrações de suas histórias favoritas, como Alice no País das Maravilhas e Cinderela. Seus primeiros trabalhos publicados foram cartões comemorativos e algumas ilustrações para a editora Hildesheimer & Faulkner.

Ela também se tornaria, mais tarde, uma ilustradora científica. Apaixonada pela botânica, foi convidada a estudar fungos na Royal Botanical Gardens in Kew, produzindo centenas de desenhos detalhados. A curiosidade por esse universo era tanta que em 1896 desenvolveu sua própria teoria de como os esporos dos fungos se reproduziam. Seu artigo foi inicialmente rejeitado pelo diretor do Royal Botanical Gardens, William Thiselton-Dyer. Não desistiu e continuou pesquisando. Depois de um ano, convenceu o expert em fungos George Massee a apresentar seu artigo na Linnean Society of London, já que as mulheres não eram aceitas por lá. O artigo nunca foi publicado, mas os cientistas reconhecem até hoje a sua contribuição na área. Apenas em 1997 a The Linnean Society of London publicou um pedido de perdão póstumo a Beatrix pelo sexismo com que foi tratada.

As aventuras de Pedro Coelho

Sua primeira obra, Pedro Coelho, veio de uma carta enviada a Noel, filho de Annie Moore, sua governanta a quem permaneceu próxima durante toda a vida. Depois de ser rejeitada por uma série de editoras, Beatrix decidiu publicar a história por conta própria, com uma impressão inicial de 250 cópias para amigos e família, em 1901. O livro foi um sucesso instantâneo, o que fez com que a Frederick Warne & Co, que antes tinha recusado o trabalho, decidisse publicar o livro um ano depois, dessa vez em cores.

 

 

A publicação, de 1902, e resultou em um best-seller imediato. No ano seguinte, foram publicados The tale of the squirrel Nutkin e The tailor of Gloucester, seguidos por seus famosos contos. Depois do sucesso de Pedro Coelho, ela chegou a publicar mais 23 histórias, de 1902 até 1930. Hoje, pode-se encontrar uma cópia original da primeira edição de Pedro Coelho à venda pelo preço de 107 mil dólares.

A autora também mostrou-se uma grande empreendedora. Ela mesma desenvolveu o primeiro boneco do Pedro Coelho em 1903 e registrou sua patente. Desde então, esse é o personagem literário mais antigo a ser licenciado. Explorou também produtos como conjuntos de chá, pantufas e um jogo de tabuleiro. Hoje, além de todo tipo de mercadoria do coelho travesso e da adaptação para o cinema, os contos de Pedro Coelho estão disponíveis em uma série de animação no Youtube.

 

 

Na área do ativismo, Beatrix Potter batalhava pelo Fundo Nacional para Locais de Interesse Histórico ou Beleza Natural (National Trust). Decidiu manter suas posses em áreas rurais para defender a permanência de fazendas que seriam substituídas por indústrias ou apropriadas pelo turismo. Durante a sua vida, comprou e cuidou de 15 fazendas. Dizia que estava em seu estado mais feliz quando se encontrava com os animais da fazenda.

Ganhou diversos prêmios por suas ovelhas em premiações locais, e tornou-se a primeira presidente eleita da Herdwick Sheep Breeder's Association em 1943. Faleceu no mesmo ano, deixando 15 fazendas e mais de 4 mil acres de terreno para a National Trust. Uma de suas fazendas, a Hill Top Farm, foi mantida exatamente como foi deixada por ela, atendendo aos seus últimos desejos. Hoje, o lugar tornou-se ponto turístico e recebe milhares de visitantes por ano.

Comparações com J. K. Rowling

Dizem que o sobrenome Potter é pura coincidência, mas diversas foram as vezes em que Beatrix Potter foi comparada à criadora do universo de Harry Potter, J. K. Rowling. Segundo o blog Art now and then, "ambas tiveram sucesso imediato devido a seus esforços, ambas escreveram para crianças, mas tiveram sucesso igual entre os adultos, ambas escreveram histórias de fantasia em suas infâncias, ambas tiveram irmãos mais novos, a quem entretinham com suas histórias”. Noventa e cinco anos separam as duas escritoras, já que Pedro Coelho foi publicado em 1902, enquanto o primeiro Harry Potter data de 1997. Muita coisa mudou de lá para cá, inclusive o tamanho dos livros para crianças e o dinheiro obtido com as publicações, que no caso de J. K. Rowling é substancialmente maior ao de Beatrix Potter.

Uma obra cheia de críticas sociais

Sua obra chama atenção da crítica pelo sucesso que as histórias fazem também com os adultos, desde o primeiro livro. Não apenas pelos carismáticos animais como personagens, mas sobretudo pelo que eles dizem: são críticas relacionadas a questões de classe, gênero, economia e vida doméstica. Como diz Daphne Kutzer em Beatrix Potter: Writing in code: "Ela nunca pretendeu escrever um romance, mas é justo dizer que uma quantidade de seus livros na verdade são romances: seus personagens e os plots são tão complexos e abertos a interpretação quanto qualquer romance publicado naquela época."

 

 

O crítico Humphrey Carpenter foi outro leitor de Potter. Em seu ensaio Excessively impertinent bunnies: the subversive element in Beatrix Potter, apontou críticas aos valores sociais vitorianos, lembrando que a autora posicionava-se sempre ao lado do transgressor. Em seu conto The tale of two bad mice, por exemplo, a narrativa é de dois ratos que decidem tentar comer a comida que encontram em uma casa de bonecas. As bonecas que ali vivem, segundo interpretação de Carpenter, representam os valores burgueses de superficialidade, movidos pelos desejos, e não pelas necessidades. As personagens não têm nada a fazer senão permanecerem sentadas e parecerem bonitas – uma crítica também ao patriarcado, tema recorrente nas obras de Potter.

 

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