“Literatura indígena é grito primal”

09/08/2019

Por Mauricio Negro

O berço da literatura universal é a oralidade. Contudo, vale lembrar deoutros meios que utilizamos para ler, contar e partilhar histórias, valores, percepções, saberes. A narração também acontece pela representação visual, cênica, performática e musical. As pinturas corporais e os grafismos na cestaria, objetos ritualísticos, bancos, cerâmicas, tecidos e outros suportes do patrimônio cultural de tantos povos indígenas também carregam narrativas. Expressões que exigem ser compreendidas, valorizadas e preservadas pelas suas próprias especificidades, simbologia e relações interdisciplinares. Porque são memória identitária, marcadores cosmológicos de nexos ancestrais, fios de lembrança transmitidos de uma geração a outra. 

A partir da absorção de novas práticas, tecnologias e informações obtidas pela interação com a sociedade não indígena, os povos originários buscam atualizar os seus próprios costumes, saberes e práticas. A escrita e a literatura, por exemplo, tornaram-se aliadas da oralidade. Do mesmo modo, o cinema, a pintura, a escultura, as redes sociais, o teatro, o rádio, a TV, os museus, os festivais também são instrumentos de (re)existência e revitalização cultural. 

A chamada literatura indígena, produzida por um número cada vez maior de autores indígenas, é um fenômeno relativamente recente. Foi lá no final dos anos 1960, à época do milagre brasileiro, que o germe de um movimento indígena teve início. O governo decidiu integrar os brasileiros, impor uma pauta nacional única, baseada na exploração das florestas, na colonização de territórios ricos em minérios. Toda a criançada, inclusive indígena, foi obrigada a ir à escola. “Este é um país que vai para frente”, dizia o slogan do período, sempre reeditado. 

As primeiras lideranças nativas ali despontaram. Tinham frágil manejo da língua portuguesa e nenhum trato com os códigos sociais da sociedade não indígena. Ainda assim, pela coragem e atitude, inspiraram as gerações seguintes. Duas décadas depois, a nova geração de líderes, estava preparada para os desafios, soube se organizar e sensibilizar uma boa parcela da sociedade civil. O movimento indígena conseguiu marcar presença no debate nacional, por toda a sua riqueza e diversidade cultural, linguística e social, por anos escanteada. E os direitos dos povos originários foram enfim lembrados e contemplados pela Constituição Federal, em 1988. 

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Ao adotar esse recurso antes estrangeiro (ou mesmo “alienígena”, em oposição a “indígena”), amplifica-se a poranduba– ou as narrativas, na etimologia tupi –, abre-se também a mekukradjá– a roda de saberes dosKayapó –, para toda a sociedade brasileira. A escritora e arte-educadora Vãngri Kaingáng, com quem dividi a adaptação de um reconto tradicional Kaingang selecionado e exibido na Bienal Continental das Artes Indígenas Contemporâneas (México, 2012), comenta que “literatura indígena é uma forma de perpetuar o conhecimento oral, ou seja, quando um indígena escreve sobre seu próprio povo, está traduzindo para escrita as experiências que aprendeu por vivência cultural, sobre sua família, suas raízes. Ele fala da origem, de sua essência, de tudo que aprendeu e a que deve respeito, daquilo que verdadeiramente ele é. Fala com propriedade sobre aquilo que conhece”.

Os registros literários de narrativas indígenas foram primeiro recolhidos e recontado por pesquisadores, exploradores, antropólogos, escritores, curiosos, viajantes e simpatizantes. O indianismo dos intelectuais e artistas românticos, que buscavam uma autêntica expressão de brasilidade, foi uma mera adaptação do medievalismo para os trópicos. Enquanto o branco era identificado como o colonizador europeu e o negro, como o escravo africano, o indígena era reconhecido como o único e legítimo americano. Era o “bom selvagem”, na obra de Gonçalves Dias ou de José de Alencar.

A partir dos anos 1990, porém, o segmento editorial brasileiro passou a se interessar pela literatura produzida pelos próprios indígenas. Narradores recém-capacitados para a escrita passaram a registrar em papel o patrimônio que por vivência conheciam, ocupando espaços e preenchendo lacunas culturais importantes na paleta brasileira. Hoje testemunhamos uma crescente e qualificada presença indígena em vários campos do saber. Enquanto a sociedade dominante peleja para acomodar suas tantas dissonâncias, os indígenas têm se unido em busca de ainda mais capacitação e articulação. O número de graduandos é notável e o de pós-graduandos também cresce. Como destaca o escritor Daniel Munduruku: “Há mais doutores indígenas em uma década do que em todos os quinhentos anos anteriores, e alguns já ocupam cadeiras em importantes universidades brasileiras”. 

A despeito do desconhecimento do grande público, alguma resistência acadêmica e dos estereótipos, a produção literária indígena ganha corpo e credibilidade. Foi bem acolhida pelas editoras que publicam obras para crianças e jovens. Recorte que garante uma abrangência de leitores. E além do público, obteve também o reconhecimento da crítica especializada. Haja visto a inclusão de obras de autores indígenas nos catálogos, premiações e mostras expositivas. Da admirável Eliane Potiguara, que percorreu o mundo como ativista pelos direitos humanos, o livro A Terra é a mãe do índio foi premiado pelo Pen Club, na Inglaterra. Além de prêmios como o Jabuti, Prêmio da ABL ou Tolerância (Unesco), Daniel Munduruku participou como convidado de feiras literárias internacionais, em Bolonha, Bogotá, Paris e Frankfurt. 

Na literatura indígena, nem tudo que reluz é tradição. Há ficção, poesia, crônica e outros gêneros, com elementos e enredos próprios. Para Cristino Wapichana, natural de Boa Vista (RO) e autor premiado com a Estrela de Prata do Prêmio Peter Pan, concedido pelo IBBY – International Board on Books for Young People, a literatura indígena vai além da simples destreza de um punho nativo. “Há algo que a diferencia, que é a identidade; ela tem uma espiritualidade bem definida em qualquer historinha ou texto tradicional, trata-se de uma espiritualidade e visão de mundo específicas de cada povo.” É sobre fronteiras fluídas, que ele discorre. Considere um banco na forma de um animal específico, criado por um artista Kamayurá, Waujá ou Mehinaku. Será design de objeto? Artesanato? Escultura? Arte sacra? Temos a tendência a categorizar tudo, discriminando. Na perspectiva indígena não é assim. Um banco é simultaneamente função e símbolo. Objeto cotidiano, mas com valor cosmológico. 

A literatura indígena, em vez de gênero, é grito primal. Traz em si o bojo da experiência coletiva, os valores e laços de pertença, a circularidade natural antiga, apartada das gentes das cidades. E tem necessidade de ser lida, em silêncio reverente, para ser repercutida. Livros publicados por autores indígenas são quase sempre ilustrados. Isso vai além da suposta exigência de um mercado para crianças e jovens. 

Há alguns anos, eu tive a oportunidade de constatar a relevância do potencial narrativo das imagens para mediadores Xokleng, Guarani e Kaingang, alunos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Com ajuda do professor João Rivelino Barreto (nome tukano: Yupuri), durante uma semana fizemos uma imersão crítica coletiva sobre literatura indígena. Foram vários os aprendizados. Entre as colocações, uma me marcou demais. Alguns indígenas confessaram um certo desconforto com relação à imobilidade das histórias impressas. “A gente abre o livro, lê e fecha. Depois, passa o tempo, pega o livro de novo. E a história continua lá, igual. Não é sempre assim. Quando os mais velhos contam, a história muda um pouco. Depende do humor dele. Se está triste, alegre, cansado… Depende do tempo também. Se está quente ou chovendo. Depende da aldeia.” resumiu assim um dos graduandos, timidamente. 

Nessa hora, para mim ficou evidente a potência pluridimensional original: o narrador, seus gestos, a pintura corporal, os paramentos, o cenário, os sons. “Parece que no livro a história está incompleta. Falta todo o resto. Ou achatada mesmo.” Completou uma graduanda guarani, provocando risos. Diante disso, perguntei à turma: “Então, qual é o papel da ilustração para vocês?”. A resposta foi mais ou menos assim: “A ilustração a gente adora. Se for bem feita; se a gente se enxergar nela. Porque aí já dá para reconhecer a história. E fica um espaço para a gente completar do nosso jeito” Concluímos que o desafio do ilustrador ali é, no mínimo, recuperar as dimensões perdidas na transcrição da oralidade à escrita.

Estão abertos os novos horizontes de reflexão sobre as complexas inter-relações entre as artes tradicionais e a cultura contemporânea. Tenho criado narrativa visual ao longo de quase trinta anos. Acompanhei bem de perto o protagonismo de autores indígenas supracitados e outros tantos guerreiros. Ilustrei inúmeros livros indígenas. Farei outros! Admiro-os e os tenho como irmãos. Para mim é responsabilidade, pesquisa, privilégio, alegria e honra recorrer à iconografia tradicional de cada cultura. Agradeço a confiança, os convites e me desculpo pela licença poética. Antes de mim, tem a Ciça Fittipaldi, abrindo a picada. E pelos regatos, sinto hoje fluir – apesar da correnteza conjuntural desfavorável – a potência de artistas indígenas formidáveis, de heranças, calibragens e linhagens distintas. 

A maior satisfação deste ano é certamente o lançamento de “Nós, uma antologia de literatura indígena”, pela Companhia das Letrinhas. Colhi, organizei e ilustrei esse projeto, que tem texto de quarta capa de Daniel Munduruku e reúne dez narrativas assinadas pelos escritores Lia Minápoty, Aline Ngrejtabare L. Kayapó, Ariabo Kezo, Edson Krenak, Tiago Hakiy, Edson Kayapó, Estevão Carlos Taukane, Cristino Wapichana, Jerá Poty Miri, Rosi Waikhon e Yaguarê Yamã. E traz ainda uma pequena biografia de cada autor, informações sobre o seu povo de origem e glossário. 

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Mauricio Negro é bacharel em Comunicação Social pela ESPM/USP e pós-graduando em gestão cultural pelo SENAC. Ilustrador, escritor, designer gráfico, consultor e coordenador de projetos culturais. Desde 1990 participa de catálogos e exposições em centros como Bolonha, Bratislava, Frankfurt, Bogotá, Gotamburgo, Moscou, São Petersburgo, Pequim, Xangai, Hanói, México, entre outros. Como autor de texto e/ou imagem, tem livros publicados em português, inglês e francês. Sua produção é quase sempre relacionada a temas ambientais, identitários, tradicionais, populares e contemporâneos, sobretudo relaciona­dos à diversidade brasileira. Recebeu prêmios e menções, no Brasil e no exterior. Foi membro do conselho diretor da Sociedade dos Ilustradores do Brasl (SIB) e coordenador editorial da Coleção Muiraquitãs (Global Editora). 

 

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