A vida começa lá fora

12/11/2020

Onde começa a nossa vida? Que presente e futuro estamos oferecendo para nossas crianças? Em que condições e hábitat elas estão crescendo? Se no documentário O começo da vida 1 o foco era mostrar como a primeira infância é fundamental para construir as bases de uma vida equilibrada, em O começo da vida 2Lá fora, filme que estreou hoje (12) em 190 países nas principais plataformas de streaming (inclusive Netflix), o começo não está apenas nas crianças, mas no início de tudo, naquilo que permite a vida no planeta: a natureza. E em como esses dois começos estão (ou precisam estar) conectados. Mais do que cura, a natureza é mostrada como parte do que somos. E se a destruímos ou a afastamos, estamos destruindo a infância e a nós mesmos.

Cena do documentário O começo da vida 2 - Lá fora, da diretora Renata Terra, produzido pela Maria Farinha Filmes

E é esse o convite lançado aos espectadores, de pensar no mundo que estamos construindo e o que queremos construir lá fora – e aproveitar esse recolhimento gerado pela pandemia e todas as questões sobre a necessidade de viver ao ar livre para potencializar essa discussão. Para além disso, o filme mostra o quanto esse contato com o ambiente natural precisa estar inserido no nosso dia a dia, na porta de nossa casa – e como podemos fazer isso, mesmo nos grandes centros urbanos, onde tudo parece cinza.

 

“Cada criança que vem ao mundo é a natureza se manifestando, outra vez, e outra vez e outra vez. E como é que essas crianças vão ser tratadas? Essa é a questão” (Lea Tiriba, professora da Escola de Educação Unirio, em trecho do filme)

 

Produzido pela Maria Farinha Filmes, em parceria com o Instituto Alana e Fundação Grupo Boticário, e dirigido por Renata Terra, o documentário foi rodado no Brasil, Chile, Peru, México e Estados Unidos e traz depoimentos de alguns dos maiores especialistas em educação, infância, desenvolvimento infantil e meio ambiente, como a famosa primatóloga e antropóloga Jane Goodall e o escritor Richard Louv, autor de A última criança na natureza.

Cena do documentário O começo da vida 2 - Lá fora

 

A essa perspectiva científica, o filme mescla iniciativas comunitárias e entrevistas de crianças e pais. Finalizado ainda em 2019, antes de a pandemia por Covid-19 ser decretada, acabou recebendo um epílogo (de forma virtual) para tratar dos impactos do isolamento social. Fica clara a urgência de reagir contra a destruição do meio ambiente e o nosso modo de vida desconectado da natureza. É um convite simples e muito potente, que pode começar com um livro e uma ida lá fora.

 

“Estar em contato com a natureza reduz os casos de depressão e obesidade, aumenta os batimentos cardíacos e a expectativa de vida, melhora a qualidade de sono e da visão. Se existisse um comprimido que fizesse tudo isso, todos tomariam. Um remédio sem efeitos colaterais, talvez só um tornozelo torcido. Nós já temos isso e estamos destruindo.” (Peter Kahn, professor de Psicologia e Ciências Ambientais da University of Washington, no filme)

 

Abaixo, você confere a entrevista que a equipe do documentário concedeu - parte em uma entrevista coletiva, parte por e-mail. Vamos?

 

1) Em Começo da Vida 2, vocês não falam apenas do começo da vida das crianças. Mas tratam de um outro começo, o começo de tudo, que permite a vida de todos no planeta. E de como os dois começos estão conectados. Poderiam falar sobre como, ao destruir o meio ambiente, estamos destruindo a infância? 

Renata Terra (diretora) - Além de ser sobre a criança e a natureza, o filme fala sobre a relação, o que está entre, como a gente se conecta com os outros seres vivos. Olhar para essa relação e entender como ela pode ser nutrida e como afeta positivamente a criança é entender também essa troca. Quando a criança cresce em contato com a natureza, cria vínculos afetivos, mas esse é um contato que tem de ser cotidiano, próximo de onde a gente vive. Porque, quando falamos em criança e natureza, colocamos a natureza como sendo fora da cidade, fora do nosso cotidiano. Mas a gente entendeu que tinha que adotar isso na cidade, mais próximo e no dia a dia. E em contato livre e espontâneo, principalmente através da brincadeira, que é a forma mais poderosa e bonita de a criança se conectar com a natureza. Se a criança está feliz em um ambiente natural, essa é a forma de conectá-la, não só para o futuro, para o agora mesmo. E isso contagia todo mundo que está em volta. A Laís Fleury, uma das entrevistadas do filme, diz uma coisa muito bonita e que a gente espera que o filme contribua: como uma boa gestão pública vai ser sinônimo de uma gestão que olha para essa relação da natureza nas cidades. 

Laís Fleury (coordenadora do projeto Criança e Natureza do Instituto Alana) - Queria também trazer a dimensão do contato da natureza como um direito. Na nossa Constituição Federal, o artigo 227  dá luz à prioridade absoluta que as crianças tenham seu direito à vida, à dignidade e à saúde, todos eles preservados. E o artigo 225 assegura nosso direito em relação aos ambientes saudáveis. [Precisamos] olhar esse contato da criança com a natureza sob a perspectiva do direito, de como ele deve ser assegurado, por ela ter a sua prioridade absoluta resguardada. Principalmente na questão da proteção frente às mudanças climáticas, ao aumento do desmatamento...

A antropóloga e primatóloga Jane Goodall em cena do filme O começo da vida 2 - Lá fora

“Para quem mora na cidade, acho muito importante proporcionar para a criança desde cedo a experiência de estar na natureza, de brincar na terra, em um lugar onde a criança possa, de fato, sentir a natureza. Os cheiros, os sons, a textura da folha. É uma experiência totalmente diferente” (Jane Goodall, primatóloga e antropóloga)

 

2) O ano de 2020 foi de muitas perdas em inúmeros sentidos, e o meio ambiente no Brasil foi uma das áreas mais afetadas. Como podemos construir um 2021, um 2022, um 2023, um 2024 diferentes? 

Renata Terra - Essa reflexão faz parte da mensagem que queremos passar. Qual é o “lá fora” que queremos a partir de hoje? Como trazer de volta a natureza para as cidades e viver em um ambiente saudável, onde muitas formas de vida possam coabitar? E por onde começar? Nesse novo capítulo de O começo da vida, os principais especialistas no tema mostram como essa conexão com a natureza pode fazer parte da cura para os maiores desafios da humanidade contemporânea e da construção de uma vida de mais bem-estar e felicidade. O filme revela que esse pensamento tem sido transformador em diversas cidades pelo mundo que valorizam e promovem uma maior conexão com o mundo natural.

A soma entre ciência e ação significa uma oportunidade única para um futuro com mais saúde para os humanos e o planeta. Não precisamos olhar tão longe para já encontrar ações que visam uma construção melhor do nosso meio ambiente. A reconstrução de praças, por pequeno que pareça, pode transformar a vida de uma comunidade, das crianças de um bairro. Escolas arborizadas fazem muita diferença no desenvolvimento dos pequenos. Essa é uma transformação que passa por toda a sociedade: empresas, governos, escolas, instituições e dentro dos nossas casas. Como diz Richard Louv, o autor de A última criança na natureza, livro seminal sobre o tema: “A verdadeira medida do sucesso não será o número de programas criados nem de leis aprovadas, mas a amplitude da mudança cultural que vai tornar essas decisões um hábito - em todas as famílias, em todas as escolas e em todos os bairros.

Cena do documentário O começo da vida 2 - Lá fora

3) Quais links podemos estabelecer entre a literatura e essa importância de vivenciar a natureza? Como a literatura infantil pode se colocar a favor dessa conexão com a natureza?

Renata Terra – Acredito que as crianças se conectam com as histórias dos livros tão intensamente quanto são capazes de se conectar com as histórias que o entorno natural conta pra elas. Ambos são mundos que convidam à imaginação e à reflexão. É claro que em um ambiente com natureza as crianças querem e devem ter liberdade para brincar livremente, explorar com independência os arredores. Mas estes espaços proporcionam igualmente um ambiente de serenidade, maior silêncio e concentração.

Fazendo o filme, pudemos conhecer escolas que reúnem seus alunos, mesmo do ensino infantil, ao pé de árvores, ao redor de fogueiras, para ler e compartilhar as histórias que os livros trazem. Também vimos jovens lendo sozinhos, imersos em atmosfera tranquila e concentrada. Estar na natureza nos coloca em um estado de espírito mais receptivo, que pode ser tanto para brincar ativamente como para se recolher e adentrar no mundo das histórias dos livros.

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“A infância é um estado que nos torna capazes de reinventar a natureza e lançar olhares inéditos sobre o mundo, de enxergar outros caminhos que não parecem óbvios." (Renato Noguera, doutor em Filosofia pela UFRRJ e autor de 'Nana e Nilo')

 

4) Os documentários da Maria Farinha Filmes (MFF) sempre foram muito potentes, no sentido de despertar uma reflexão sobre nosso modo de vida e como estamos lidando com nossas crianças. No entanto, vivemos tempos obscuros de negacionismo e politização da pauta ambiental. Como vocês acham que o documentário vai ser recebido por uma da população que não enxerga na conservação da natureza uma prioridade?

Estela Renner (produtora e co-fundadora da MFF) – Acho que a Maria Farinha tem um conjunto de obras que, minimamente, tem uma coesão e sempre tenta trazer inspiração e informação pra gente poder sonhar juntos com um mundo mais sustentável, mais colaborativo, mais diverso, mais inclusivo. Tem uma criança nesse filme que fala uma coisa muito simples, mas que é a chave dessa resposta: a gente vem da terra.

A invenção da política, da pólis, da cidade, é muito posterior à natureza. O ar que respiramos, o chão que pisamos, a natureza com a qual nos maravilhamos e nos equilibramos é muito anterior às nossas invenções culturais, de esquerda e direita, de partido, de fronteiras entre países. O começo da vida 2 é realizado de uma forma muito sensível pela Renata Terra e toda a equipe, no qual tanto os especialistas, quanto as crianças e os pais fazem um convite para essa reflexão e para a lembrança de que a gente é natureza. Não dá nem para colocar isso dentro de uma pauta política, porque tem a ver com a nossa existência, com o que a gente é.

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Cena do filme O começo da vida 2 - Lá fora mostra a cidade de São Paulo, que tem apenas 2,4 metros quadrados de área verde por habitante, quando o recomendado pela Organização Mundial de Saúde é de 12 m2

 

5) Como realizar esse filme mudou concretamente a vida de vocês? Como esperam que mude a vida de quem o assistir?

Laís Fleury – Essa relação com a natureza sempre foi um tópico muito central da minha vida, pra minha tomada de decisão sobre vários aspectos. Mas participar do filme tem trazido uma consciência muito maior sobre a importância desse contato e um senso de urgência, de entender que essa deve ser uma pauta prioritária para a saúde não só das pessoas, mas para o meio ambiente. Temos hoje uma visão crítica [sobre a necessidade de contato com a natureza] gerada pela obrigatoriedade do confinamento, mas, de certa, forma, as crianças já estavam vivendo esse confinamento antes da pandemia.

E o filme traz uma oportunidade de refletir o que a gente quer deixar para trás e o que incorporar e se, de fato, a gente traz a natureza como eixo norteador na nossa vida sob múltiplos aspectos –  o quanto a gente ganha em termos de saúde, de sensibilidade, de qualidade nas relações uns com os outros. Esse aspecto da humanidade está sendo colocado em xeque e precisa ser nutrido de uma forma muito urgente.

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Renata Terra – Foram dois anos de pesquisa, produção e montagem e, ao longo desse tempo, o conhecimento adquirido e as entrevistas foram me levando para a minha infância. Eu tive muito contato com a natureza, um contato muito afetivo mediado pelo meu avô. Ao longo da minha carreira, trabalhei muito com filmes que têm a questão ambiental de forma central, mas, num filme que fala sobre meio ambiente e infância, isso resgatou algo que formou minha sensibilidade de alguma maneira. Foi muito especial. Recuperou para mim algo que estava lá, guardadinho, e acho que vou continuar carregando e transferindo para meu filho, que cresceu comigo na cidade e que, sempre que eu podia, levava para lugares de natureza.

Mas participar desse filme me trouxe a perspectiva de que a natureza tem que estar na porta de casa, temos que buscar essas experiências perto da gente, que é uma visão que eu não tinha. Espero que o filme também possa divulgar esse olhar. É claro, sabemos que esse “perto de casa” é muito desigual nas cidades. Por isso fomos buscar [iniciativas] que  enfrentam todas as dificuldades, como o Navegando nas Artes, no Grajaú (bairro periférico de São Paulo), mas onde as pessoas encontram um meio para melhorar as condições. Esse aprendizado foi muito importante para mim.

 

“São milhares de anos que vivemos em contato com a natureza. E, nesse fluxo, o afeto sempre esteve presente. Não éramos máquinas, tratando a natureza de uma maneira mecânica. Mas, ao nos afastarmos dela, perdemos essa natureza em nós, que é a parte humana. Estamos nos tornando desumanos. Acho que perdemos nossa sensibilidade, a capacidade de nos maravilharmos.” (Joaquín Leguía, fundador da ANIA – Asociación para la niñez y su ambiente, no filme)

 

Malu Nunes (diretora-executiva da Fundação Grupo Boticário) - Como a Renata falou, me reconectou com a minha infância. Tive uma infância no meio de araucárias, de sítios, bichos – e quando falo bicho não é cachorro e gato, é macaco, veadinho, jaguatirica. Imagina como foi crescer no interior do Paraná nos anos 1960, perto do Parque Nacional do Iguaçu. Hoje vejo que foi um privilégio. E sempre tive essa necessidade de estar na natureza, sou uma prova viva de que existe um “déficit de natureza”. Esse filme veio reforçar isso, mas também uma responsabilidade de militar por essa causa, porque todas as crianças precisam ter essa oportunidade.

Estela Renner - O começo da vida 2 trouxe uma sensação, que já era muito presente em mim, de que a próxima década é A DÉCADA. A gente vai chegar ao ponto do não-retorno em relação às mudanças climáticas. Os próximos dez anos são definitivos em tudo o que a gente escolher fazer e o filme trouxe, através da ciência e da experiência, um conjunto de informações que prova que não é para depois. Uma especialista no filme pergunta: é um acessório ou uma necessidade? É uma necessidade! A não natureza gera doença e medicalizar essa doença não é a solução. A medicalização da infância não vai deixar seu filho mais vivo, inclusive pode deixar ele mais doente. Para mim, foi um grande aprendizado da urgência, do “para tudo e vamos resolver isso agora”.

Cena do filme O começo da vida 2 - Lá fora

 

6) Que experiências foram mais marcantes durante as entrevistas?

Renata Terra – Algo que me impressionou muito foi conversar com as crianças e os jovens. Fica latente o olhar horizontal que eles têm para com os outros seres vivos e, ao mesmo tempo, uma incompreensão do por que nosso modo de vida está destruindo essas outras formas de vida e a nós mesmos. De certa forma, isso me dá esperanças, e também um senso de urgência e compromisso com as crianças não só no futuro, mas no presente. Esse olhar de preocupação que crianças e jovens trazem é algo diante do qual não podemos ficar impassíveis. 

 

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