Somos todos folclore brasileiro

06/04/2021

Por Januária Cristina Alves

A série Cidade Invisível, que estreou na Netflix em fevereiro de 2021, virou uma das dez mais vistas em mais de quarenta países do mundo à época. Tive o privilégio de ter o meu livro Abecedário de personagens do folclore brasileiro (FTD Educação/Edições SESC SP) usado como referência e fonte de pesquisa para a elaboração do roteiro da série.

Cartaz da série Cidade invisível, da Netflix

Personagens da série Cidade Invisível, uma das mais vistas da Netflix um mês depois de seu lançamento 

O diretor, Carlos Saldanha, um brasileiro que está a mais de trinta anos nos Estados Unidos e é responsável por sucessos da animação mundial como A era do gelo e Rio, fez a sua leitura dessas criaturas que habitam o universo mítico dos brasileiros há séculos, inserindo-as no Rio de Janeiro do século 21, de maneira criativa e inteligente.

Lembro-me bem de uma de nossas conversas quando eu lhe disse que ele poderia sim, contar essa história a partir do seu ponto de vista e da sua visão do mundo contemporâneo, porque o folclore nos dá essa liberdade, pois, como diz o ditado: “quem conta um conto aumenta um ponto”. E ele foi extremamente feliz não apenas na maneira de (re)contar essas histórias, mas sobretudo de aproximar esses personagens de todos nós, seres humanos.

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Cena de Cidade Invsível (Imagem: Netflix) 

O folclore é o nosso espelho

A uma certa altura da série, o personagem Ciço, líder comunitário da Vila Toré (onde se passa a trama), interpretado pelo ator paraibano José Dumont (que dá um show de interpretação como a representação mais evidente do pensamento mágico e das crenças que permeiam a relação do povo brasileiro com as suas tradições orais), responde, ao ser perguntado sobre “quem são esses personagens”: “são nossos espelhos!”.

E com essa afirmação simples e direta, explica o porquê de a série ter sido sucesso no mundo inteiro, em diferentes culturas e idiomas. Os personagens do folclore brasileiro são nossos espelhos, nos lembram de quem somos, de onde viemos, do imenso caldo cultural que nos amalgamou, e de que fazemos parte de tradições histórico-culturais que nos trouxeram até aqui, com nossas qualidades e defeitos, limitações e possibilidades. 

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Cena de Cidade Invsível (Imagem: Netflix) 

Está sendo extremamente gratificante para mim assistir a essa redescoberta do folclore brasileiro por meio da série. Quando lancei o Abecedário também testemunhei essa espécie de renascimento, que acontece quando os brasileiros se dão conta de que as nossas histórias são incríveis, que são tão ou muito mais ricas do que as muitas narrativas orais de outros povos, que nos acostumamos a cultuar seja no Halloween ou nas diversas mídias que nos conectam.

De repente, as pessoas parecem ter se lembrado do fascínio provocado pela figura do Saci-Pererê que nos foi apresentado na infância, na maior parte das vezes, por meio dos livros de Monteiro Lobato. Qual não foi o espanto e o interesse que a figura de entidades como o Corpo Seco provocou no público que viu os sete episódios da série. “Quem é esse? De onde vem? Nunca tinha ouvido falar”.... e por aí vai a curiosidade dos brasileiros em torno desse ser tão abjeto que nem “a terra quis”, que vaga ao léu, assombrando quem encontra pela frente.

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A renovação do interesse pelos personagens do Folclore Brasileiro chega em boa hora. Vivemos um momento singular tanto na história do Brasil como na do mundo, assombrados por um vírus que se transmuta milhões de vezes e pelas narrativas que circulam por toda parte, espalhando histórias que deturpam a realidade, causando confusão, transmutando sentidos e nos fazendo duvidar do que vemos, ouvimos e sentimos.

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Cena de Cidade Invsível (Imagem: Netflix) 

O vírus da Covid-19 alastrou-se no rastro da desinformação, do negacionismo, da descrença na ciência, do discurso de ódio, da falta de vínculo e de senso humanitário. Faltam a empatia e o espírito de solidariedade - elementos que as histórias de tradição oral tanto inspiram - nas narrativas da contemporaneidade. E cá estamos nós, lutando bravamente para distinguir o que é verdade do que é mentira.

É preciso conhecer mais e melhor o folclore, as mitologias, as “histórias de trancoso” que constituem o nosso imaginário para que aprendamos, desde a mais tenra idade, a trafegar do real para o fantástico com segurança e liberdade, exercitando o direito primordial de todo ser humano: o de criar e contar histórias.

Quando entendemos os limites da fantasia e percebemos que é lá que determinadas situações devem ter espaço para acontecer, reconhecemos de pronto o absurdo e a falta de conexão com o que é ético e sustentável no nosso cotidiano, favorecendo o exercício do nosso senso crítico, nos ajudando a construir um percurso que nos levará a um exercício da cidadania potente e justo. As histórias nos fazem melhores, nos apontam caminhos, aplacam angústias, trazem soluções novas para problemas antigos. (Januária Cristina Alves)

Não por acaso os personagens do folclore brasileiro têm sido “convocados” para resolver as inúmeras mazelas do nosso país, como escreveu de modo brilhante o jornalista e conterrâneo pernambucano Xico Sá, em sua coluna do jornal El País: “Arrepiai-vos, o terror nacional, além, muito além do seriado Cidade Invisível (Netflix), está apenas na metade. Temos 22 mal-assombrados meses pela frente. A não ser que apareça um Curupira e legiões de heroicos boitatás capazes de promover um sumiço desse Unhudo. (...) Caso as lendas do mato não sejam suficientes para brecar o inominável apelemos para as lendas urbanas. Quem sabe a Perna Cabeluda, Papa-Figo, Galeguinho do Coque, Biu do Olho Verde, Palhaço do Coqueiro do Janga, Quibungo, Morto da Governadoria, Lobisomem da RFFSA, Cão de Itaoca, Corta-Bundas, Bebê Diabo, Loira do Algodão, Chupa Cabra... Alguém lembra de outras?”.

Eu acredito, caro Xico e todos os leitores desse artigo, que esses personagens já estão por aí, fazendo a sua parte, inspirando cada um de nós na construção coletiva da nossa identidade de brasileiros e da nossa história. Afinal de contas, de uma coisa eu tenho certeza: todos somos os personagens do folclore brasileiro.  

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Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, vencedora do Prêmio Vladimir Herzog e Direitos Humanos (1990) e coautora do livro Como não ser engando pelas Fake News (Editora Moderna).

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