Heloisa Prieto: "Narrar é uma forma de pensar o mundo"

04/10/2022

Quando lançou o primeiro título pela Companhia das Letrinhas, Duendes e Gnomos, em 1992, a paulistana Heloisa Prieto não imaginava o tamanho - e a intensidade - da história que viria pela frente. “Eu trabalhava como professora de pré-escola quando percebi que tinha muita facilidade em inventar histórias para os alunos. Foi nesse período que comecei a receber convites para escrever”, relembra. E, assim, foram três décadas de parceria e 24 obras de sucesso somente com o Grupo Companhia, lidas por crianças de diferentes gerações. Heloisa tem hoje mais de 90 livros publicados e traz das sugestões e desafios dos leitores a inspiração para muitas narrativas.

Narrar é uma forma de pensar o mundo. Acho interessante analisar como as narrativas modificam-se, segundo as mudanças nas mentalidades. (Heloisa Prieto, autora)

*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais. 

 

Heloisa Prieto, 30 anos de parceria e 24 livros pela Companhia das Letrinhas

Seu livro mais recente pelo Grupo Companhia das Letras é 1002 fantasmas (2022), publicado pelo selo Seguinte, e veio do público, durante as visitas que fez às escolas adotantes de suas obras. “Recebo ótimas sugestões para novas narrativas, como aconteceu no caso de 1002 fantasmas, que foi escrito praticamente a pedido dos leitores”, revelou. 

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Para contar um pouco sobre como foram esses 30 anos, a relação com os leitores, o processo de escrita e o começo da história de Heloísa como autora infantil, o Blog da Letrinhas bateu um papo com ela. Acompanhe:

Você foi uma das primeiras autoras da Companhia das Letrinhas, há 30 anos. Como começou essa história?

Heloisa Prieto - Meu primeiro livro na Companhia das Letrinhas foi Duendes e gnomos, lindamente ilustrado por Elizabeth Tognato. A ideia era montar uma antologia de contos clássicos com esses personagens. O subtítulo, Quase tudo o que você queria saber foi uma sugestão do Luiz (Schwarcz, fundador da companhia, junto com a esposa, Lilia Moritz Schwarcz), pois, além dos contos, o livro traria verbetes a respeito dessas criaturas mágicas. Beth Tognato até frequentou nossa casa para trocar ideias sobre o projeto e um de nossos gatos, o Bart, foi retratado por ela como personagem de um dos contos! Ao terminar a seleção, percebi que faltava uma história contemporânea. Então, escrevi um conto breve no qual um duende finge que é parte de um videogame, quando, na verdade, o que ele deseja é manter-se vivo na imaginação das crianças. Lilia adorou o conto e, a partir desse momento, passou a sugerir temas e a me convidar para escrever novas histórias. 

Duendes e gnomos foi o primeiro livro de Heloisa Prieto pela Letrinhas, em 1992

Que outros projetos surgiram a partir dessa parceria com a Lilia?

Alguns anos mais tarde, foi por sugestão de Lili, por exemplo, que escrevi O jogo da parlenda (2005), que adorei criar. Hoje, agradeço muitíssimo pelo desafio que ela me fez, para que eu recontasse alguns dos mitos gregos. De início, me senti intimidada pela tarefa, agora, fico muito feliz ao ver a trilogia - Divinas aventuras (1997), Divinas desventuras (2009) e Divinas travessuras (2012) - seguir com novas edições a cada ano que passa. Além de meus próprios títulos, Lili e eu trocávamos ideias sobre traduções e textos de outros autores. Adorei quando ela me convidou para coordenar os títulos Histórias de Índio, de Daniel Munduruku, e Histórias da Preta, de Heloisa Pires. Hoje, ambos são amigos muitos queridos.  

Divinas desventuras

Como soube que queria escrever para crianças? 

Sempre adorei contar e ouvir histórias. Na minha família, todos adoravam “causos”, aventuras e relato das excentricidades de cada um. Quando trabalhei como professora de pré-escolares na Escola da Vila (SP), percebi que tinha muita facilidade em inventar histórias para os alunos. Foi nesse período que comecei a receber convites para escrever. Eu não tinha o ofício da escrita criativa como meta pessoal, embora eu tenha dado oficinas de criação desde os tempos da faculdade. Na verdade, dividia o tempo entre as aulas na escola, a pesquisa sobre infância juntamente com o centro de estudos na escola e as traduções de clássicos. Lili foi minha grande incentivadora, como contei. Além dela, os leitores também me pedem novas histórias, fazem sugestões e desafios.

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Como era escrever para crianças há 30 anos e como é hoje? O que mudou ao longo dessas três décadas? 

Hoje, após 91 títulos publicados, sinto que fui ampliando a área de atuação. Pesquiso, estudo, participo de grupos de escrita criativa, sempre focando no aprimoramento do meu texto. O que me motiva é o desafio de narrar uma história contemporânea que não pertença a um leque de temas convencionais, pode ser um convite que me cativa, um clássico que desejo traduzir. As narrativas me conduzem, então, não penso apenas num determinado público alvo, tema ou estilo específico; gosto muito de experimentar novos desafios. Já escrevi para todas as idades, contos breves, novelas e romances, mas reparo que meus leitores, muitas vezes, desobedecem às indicações de faixa etária. Quero dizer: já tive jovens e adultos que adoravam a coleção Quase tudo o que você queria saber, originalmente direcionada a crianças, por exemplo. Creio que meu maior cuidado é sempre no sentido de jamais subestimar a sensibilidade e inteligência das crianças e jovens. 

Sempre adorei contar e ouvir histórias. Na minha família, todos adoravam “causos”, aventuras e relato das excentricidades de cada um. (Heloisa Prieto, autora)

Como autora, como percebe as mudanças no mercado de literatura infantil de 30 anos para cá?

Há três anos, participo de um seminário de literatura para jovens e crianças da universidade Trinity, em Dublin, na Irlanda. Um tema muito discutido tem sido o dos livros voltados para jovens adultos. Conversando com especialistas, percebi que, no Brasil, a fronteira entre o livro para jovens e os títulos para jovens adultos é mais tênue. Na Irlanda, por exemplo, a obra de Sally Rooney, uma escritora que aprecio muito, é considerada como literatura “adulta”, ao passo que, aqui, é muito lida por “jovens adultos”. Na antologia De primeira viagem (Companhia das Letras, 2004), inserimos diversos contos de autores que não necessariamente escrevem literatura juvenil e a antologia ganhou prêmios. O conto Juventude, de Joseph Conrad, narra uma incrível experiência de iniciação à vida adulta, mas, em seu tempo, o autor certamente não imaginou estar escrevendo para uma faixa etária específica. 

Os leitores também passaram por mudanças perceptíveis?

Percebo na recepção de meus livros que os jovens leitores atuais solicitam maiores explicações sobre a motivação dos personagens, mais detalhes de enredo e até mesmo na solução de mistérios. Quando escrevi 1001 fantasmas, quanto mais aberto fosse o final, melhor. Como todo mistério que se preze, precisava manter-se o segredo, mas, recentemente, ao criar 1002 fantasmas, imaginando um diálogo com leitores, senti necessidade de introduzir mais elementos biográficos nas vidas dos personagens. 

Hoje, há muitas outras fontes de entretenimento e lazer que ocupam o tempo das crianças, como a internet, os streamings… Isso também acaba influenciando, de alguma maneira, na literatura?

A maneira pela qual as narrativas atuais dialogam com os seriados da TV também é um tópico de estudo atual. É quase como se os novos títulos almejassem uma adaptação para as telas. Por outro lado, a linguagem dos seriados, repleta de pontos de virada e peripécias, dialoga de perto com os folhetins do século XIX, com obras como a de Alexandre Dumas, um de meus autores preferidos. Além disso, temos a cultura material do universo da criança. Logo nos primórdios da revolução industrial, quando aconteceu a comercialização extensa de bonecas, por exemplo, elas eram vendidas com um livrinho que continha uma biografia. Esse gênero se tornou muito popular enquanto narrativas de coisas - it narratives. Hoje, quando um personagem se torna famoso em desenhos animados ou filmes, logo surge um livro no qual ele é protagonista. O intercâmbio entre o material e o imaginário adquirem formas diferentes de acordo com a época. 

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Como você se inspira para criar uma história? 

Acho que sou muito diferente da figura de uma escritora romântica, inspirada por sentimentos íntimos, escrevendo sozinha, de preferência de madrugada. Sou uma pessoa solar, praticante de esportes, que adora viagens. Com meus pais, aprendi a observar e, ao longo da vida, fiquei cada vez mais convencida da importância da escuta do outro. Creio que minha inspiração vem da percepção de que há uma história que necessita ser contada. No caso de 1001 e 1002 fantasmas, por exemplo, vi que quase não existiam livros epistolares [quando a narrativa é desenvolvida em formato de cartas] para crianças e achei que seria muito divertido criá-los. Para transformar esses pontos de percepção em narrativas, sempre pesquiso muito, tanto nas universidades quanto informalmente, por meio de leituras constantes. Há também a observação do movimento das narrativas, como se move o mar de histórias no mundo. Isso significa assistir a muitos filmes (coisa que adoro fazer), seriados, HQs, etc. Narrar é uma forma de pensar o mundo. Acho interessante analisar como as narrativas modificam-se, segundo as mudanças nas mentalidades. Ao mesmo tempo, uma história boa e forte pode, ela mesma, operar uma mudança na percepção dos leitores. Admiro muito Oliver Twist, por exemplo, e a força de Charles Dickens no sentido de tornar visíveis as crianças excluídas.  

 Meu maior cuidado é jamais subestimar a sensibilidade e inteligência das crianças e jovens (Heloisa Prieto, autora)

Como é seu processo criativo, depois de ter a ideia?

Inicialmente, faço anotações manuscritas sobre as narrativas; depois, vou organizando num arquivo digital. A última etapa é a escrita. Geralmente, faço ao menos três versões, antes de chegar ao texto final. Gosto também de ter uma trilha sonora de fundo. Adoro música. 

Como funcionam as suas parcerias com outros autores e ilustradores?

Em casa, muitas vezes, alguém começava a contar um caso e outra pessoa da família o complementava. Considero o trabalho nas antologias e parcerias quase como uma roda de histórias. Gosto muito de escrita compartilhada. Esse procedimento é comum no audiovisual, mas não tão corrente na literatura. Gosto de ambas as situações; quer dizer, é bom criar em conjunto, como manter também uma expressão individual. Como numa roda de histórias, sinto que um escritor sempre acaba inspirando mais o outro e cada parceria tem características próprias. No caso dos ilustradores, por exemplo, faço questão de não invadir o espaço criativo do artista. Considero todos os parceiros criativos como amigos muito queridos, companheiros de viagens inesquecíveis.

Você tem um livro favorito? 

Esta é uma pergunta que as crianças sempre me fazem. Cada livro contém uma grande descoberta, a história de sua invenção, a captura de um determinado momento. Não tenho um preferido, na verdade, pois não os teria publicado se não amasse cada um deles.

Lilia é uma das grandes incentivadoras de Heloisa

Ao longo desses anos escrevendo para crianças, lembra de alguma história marcante relacionada aos leitores? 

Sim, tenho várias histórias marcantes. Por exemplo, durante uma palestra numa escola particular, uma leitora contou que, após ler 1001 fantasmas pela terceira vez, o pai dela quis saber por que ela estava gostando tanto do livro. Quando ele pegou o livro emprestado e se trancou no quarto para ler, ela ficou um pouco apreensiva. Será que ele ia gostar também? Mas, ao sair do quarto, o pai lhe devolveu o livro com um sorriso, dizendo que tinha adorado. Tampouco consigo esquecer a pergunta que me fez um leitor: o que você acha de ter sido a escritora que me fez gostar de ler, eu que detestava livros?

Como é, aliás, a sua relação e o seu contato com os leitores?

Gosto muito do contato com os leitores. Frequento bastante as escolas adotantes dos livros. Nestes momentos, costumo conversar não apenas sobre a obra lida, como também sobre os livros que “estão no forno”. Muitas vezes, recebo ótimas sugestões para novas narrativas, como aconteceu no caso de 1002 fantasmas, escrito praticamente a pedido dos leitores.

O que você gostava de ler quando criança? 

Comecei a ler muito cedo, incentivada pela família, em especial por um tio muito querido, chamado Paschoal, que sempre me oferecia livros. Os primeiros títulos foram antologias de obras de Andersen, dos Irmãos Grimm, bem como os contos de Oscar Wilde e histórias do mundo todo. Ainda conservo esses primeiros livros e abri-los funciona como uma viagem no tempo, pois me reencontro ali, ainda garota, marcando as histórias preferidas.

Cada história querida remete a um aspecto de minha infância. Livros são como portais. (Heloisa Prieto, autora)

De que outros autores infantis você gosta e por quê?

Quando era professora, lia com os alunos as obras dos grandes mestres da literatura infantil brasileira, como Sylvia Ortoff, Ziraldo, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Maria Clara Machado, Maurício de Souza e Tatiana Belinky. A lista de autores brasileiros preferidos é enorme. Só para citar alguns nomes, curto muito o trabalho de Janaina Tokitaka, Emicida, Kiusam, Daniel Munduruku, Heloisa Pires, Olivio Jekupe, Ana Terra, Ana Claudia Ramos, Mauricio Negro, Roger Mello. Nossa literatura infanto-juvenil é riquíssima e inovadora. 

 
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