Vamos desenhar palavras escritas?

31/03/2023

Por Sofia Mariutti

 

Capa do livro Vamos desenhar palavras escritas?, de Sofia Mariutti e Yara Kono pela Companhia das Letrinhas

 

Comecei a escrever o livro Vamos desenhar palavras escritas? em 2019, mais ou menos quando a Mira, minha filha, começou a falar. Enquanto ela aprendia a língua portuguesa, eu aprendia a língua dos livros infantis, lendo com ela a cada dia um livro novo e me educando nesse terreno meio novo pra mim. Ela nem juntava duas palavras quando olhou pra uma cobra de brinquedo e disse “trem!”. Era uma cobra de madeira, desmembrada, com partes articuladas como vagões. Entendi ali que ela tinha feito, intencionalmente ou não, sua primeira metáfora — que a metaforização talvez fosse tão inata quanto a linguagem.

O mesmo processo de substituição de uma coisa pela outra se repetiu várias vezes, como quando ela apontou para uma janela meio fechada e me pediu para “abrir a outra pétala”, fazendo da “persiana-pétala” a parte de um todo que só poderia ser a “janela-flor”. Lembro de aprender a dar nome às figuras de linguagem no Ensino Médio, mas talvez elas já estejam com a gente de um jeito bem natural desde que a gente nasce. A Mira usou também a personificação quando me perguntou “Onde essa baleia trabalha?”, e o oximoro quando disse “Você vai crescer, crescer, até ficar bem pequenininha”. A paronomásia, as rimas e os trocadilhos também sempre estiveram lá: “O prego é um perigo!”.

 

Ilustração de Yara Kono mostra a cobra-trem do poema de Sofia Mariutti, no livro Vamos desenhar palavras escritas?

A cobra de madeira, que virou trem, foi a primeira metáfora da filha de Sofia e foi aí que este livro começou a ser escrito

 

Comecei a colecionar exaustivamente essas frases poéticas, que às vezes podiam ser só palavras ligadas a uma situação. E que têm um quê da tradição oral, porque às vezes não sabia se elas estavam vindo de algum livro ou de outra pessoa e a Mira as havia torcido, como num telefone sem fio, e algumas vezes não sabia nem se eram um espelho bem aprimorado de alguma coisa que eu mesma tinha dito. Essa coleção sem fim foi crescendo e ao mesmo tempo sendo polida num poemão bem extenso, que um dia mostrei para a Alice Sant’Anna.

Ela disse: isso dá um livro infantil. E sem ela não existiria esse livro. Mandei então o poema para a Mell Brites, e ela abraçou a ideia com o maior carinho, me deixando surpresa e me fazendo acreditar até quando eu desconfiava. O editor — mais afetuoso e paciente — se tornou o Antonio Castro, e aí veio reunião, conversa, e mais polimento, e o poemão foi se condensando em poucos versos.

 

Desenho do livro Vamos desenhar palavras escritas?, com texto de Sofia Mariutti e ilustrações de Yara Kono, pela Companhia das Letrinhas

"Não tá frio, não, tá sábado", diz trecho do livro de Sofia Mariutti e Yara Kono

 

Falamos muito sobre coesão, e a coesão veio mesmo com o traço genial da Yara Kono, essa artista tão fina e experiente com quem tive a sorte de me juntar nessa parceria. A Yara cria imagens abertas, que permitem um sem fim de leituras, como as combinações de palavras. Esse livro é nosso, e isso me dá o maior orgulho.

E esse livro seria impossível sem a Helen Nakao e a Camila Mary, que também tiveram a maior paciência nessa mediação entre texto e imagem que é tão nova pra mim, buscando sempre o lugar da excelência. Agradeço infinitamente a elas e a toda a equipe das Letrinhas que trabalhou no livro: obrigada.

Esse livro é sobretudo da Mira, para a Mira, com a Mira, pela Mira, sobre a Mira, através da Mira. Que alegria sua existência, filha, que alegria sua linguagem que me transforma todos os dias. Passados quatro anos do dia em que você olhou pra cobra e disse “trem”, hoje você está aprendendo a escrever, e com você aprendi que “escrever” é só um nome bem mais sem graça para o gesto de “desenhar palavras escritas”. Vamos?

***

Sofia Mariutti é editora, tradutora, poeta e mestra em língua e literatura alemã pela Universidade de São Paulo (USP). Já publicou A orca no avião (Editora Patuá, 2017). Vamos desenhar palavras escritas? é o seu primeiro livro infantil.

 

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