Dez anos de "Bárbaro", o livro-imagem no Brasil e o papel do leitor-criador

12/05/2023

Uma criança quando brinca faz isso com a maior das seriedades. A brincadeira é seu modo de investigação do mundo, uma expressão da capacidade naturalmente exploradora da infância. Há 10 anos, silencioso como uma criança em estado de brincar, um livro nascia para eternizar um desses momentos no espaço de um livro. Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013), do ilustrador e escritor paulista Renato Moriconi, completa sua primeira década em 2023.

Sem palavras escritas, ele conta muitas histórias, diverte, brinca – e conquistou muitos leitores, em várias línguas, como francês, inglês e italiano. Mas por que será que o livro-imagem continua causando dúvidas na hora de um adulto escolher um livro para mediar ou presentear uma criança? Por que para muitas pessoas ainda parece complicado se colocar no papel de leitor-criador?

 

Ninguém poderia imaginar o que acontece depois que o herói silencioso de Bárbaro ultrapassa tantos desafios. Uma obra que brinca de adivinhar ao contar uma história em imagens e também pela materialidade do livro.

 

Em Bárbaro, um pequeno guerreiro está montado em seu cavalo voador, pronto para enfrentar monstros linguarudos e gigantes cheios de dentes, até que de repente ele pára. E começa a chorar. Por que será?

Momento cintilante de uma trajetória artística que soma mais de 60 livros publicados no Brasil e exterior, Bárbaro vem há uma década confirmando seu lugar como um marco da literatura ilustrada brasileira. Moriconi tem outros sete títulos pelo Grupo Companhia das Letras, dentre eles Uma planta muito faminta (Companhia das Letrinhas, 2021), e O dia da festa (Pequena Zahar, 2017), para citar alguns de sua autoria em texto escrito e ilustrado.

Podemos dizer que é um livro que não envelhece, porque é literatura (Renata Junqueira, pesquisadora)

Para assoprar as velinhas desse “bravo guerreiro sem palavras”, convidamos o leitor a mergulhar no universo das narrativas visuais, ou, como é conhecido no jargão teórico e editorial: o livro-imagem. Renata Junqueira, professora, doutora em literatura infantil, docente visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e sênior da UNESP, nos ajuda a pensar sobre o tema, instigando ainda mais leitores a ganharem um interesse particular pelas narrativas sem palavras. 

Aprender a ler imagens 

Na reportagem Como ler as narrativas visuais, o Blog da Letrinhas já tinha abordado o assunto ao convidar Renato Moriconi e Irena Freitas – artista gráfica e autora do livro-imagem A floresta – para ajudar os leitores a pensar sobre essa forma de narrar sem palavras escritas, e como mediá-las. A ideia, agora, é refletir por que é que afinal tantos adultos podem ter uma espécie de medo dos livros que não contém palavras. E aproveitamos o aniversário de Bárbaro para desdobrar o assunto em discussões sobre esse jeito de narrar que de tão particular é considerado um gênero por muitos autores.

No entendimento da artista Suzy Lee, referência mundial em livro-imagem, este é uma derivação do livro ilustrado, mas diferente dele por tomar a imagem como fio condutor da narração – “é apenas uma das muitas formas do livro ilustrado”, ela diz, em A trilogia da margem (Cosac Naify, 2012, fora de catálogo). Por isso, o livro-imagem é necessariamente uma obra em aberto, sempre sujeita a uma pluralidade inumerável de sentidos.

Mas será que a ausência do verbal nesse tipo de livro torna o ato de ler com as crianças mais difícil, ou aquele momento descontraído das histórias antes de dormir, mais trabalhoso? “Os livros de imagem não precisam causar medo, seja em casa, com a mediação dos pais, ou na escola com os professores”, pondera Renata Junqueira, uma das organizadoras do VII Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil de Ouro Preto, que acontece entre os dias 6 a 8 de dezembro de 2023 na cidade mineira, e terá Renato Moriconi entre os convidados. Ao lado do também ilustrador e escritor Odilon Moraes, ele participará da mesa Ilustração, no último dia do evento.

O importante é perceber o movimento das imagens, na mediação deixarmos as crianças livres para imaginarem, dando tempo no movimento de virar para a página seguinte. (Renata Junqueira, pesquisadora)

 

O leitor-criador da narrativa

Uma das falas de Moriconi leva a pensar sobre esse aspecto. “Tudo é imagem. Até mesmo a palavra escrita é imagem.” Esse é um dos motivos pelo qual o autor aproxima o livro-imagem mais do campo das Artes Plásticas que da Literatura. Isso porque, ainda hoje, somos muito influenciados pela forma como aprendemos a ler e pelo próprio modo como a cultura enxerga o livro, ou seja, frequentemente como um repositório de saberes pretensamente imutáveis, em que textos escritos parecem ter mais valor que imagens. 

Já na arte, há uma associação natural da imagem com a linguagem. E essa é justamente uma das contribuições mais valiosas das narrativas visuais para a formação leitora – da criança, mas também do adulto. Aprender a ler imagens. Ao ativar no leitor o seu papel de criador na hora de ler, o livro-imagem convida a um gesto duplo, que não acontece em outros tipos de leitura: o de ler escrevendo.

Quando o texto chega na mão das crianças, é a sua curiosidade que vai movê-la para leitura. (Renata Junqueira, pesquisadora)

É o que defende também a pesquisadora e escritora argentina Cecilia Bajour, estudiosa do silêncio nas narrativas ilustradas. “Aqueles que leem são convidados a ativar estratégias de interpretação para construir laços entre o que é e o que não é. Nós nos tornamos detetives de sentidos deliciosamente escondidos.” Bajour se aprofunda sobre o assunto no texto O artesanato do silêncio, da Revista Emília, e também no livro La orfebrería del silencio, um prato cheio para quem busca criar outras relações com os vazios e as lacunas de sentido das histórias, algo tão valioso em um mundo cada vez mais tomado por hiperestímulos e informações em excesso.

Para Renata Junqueira, as inúmeras possibilidades de interlocução com o leitor são uma das contribuições do livro-imagem como percurso formativo. Ou seja, justamente por não terem um texto verbal, esses livros são os que mais criam ocasiões de interação direta entre a criança e o livro. Nesse sentido, "Bárbaro tem uma importância histórica, pois trata-se de um texto de imagem em que o leitor/criança vai construindo a narrativa. Existe toda a estrutura do texto narrativo, situação inicial, ações, problema e solução do problema partindo para o desfecho", explica a professora.

LEIA MAIS: Livro-imagem: como ler as narrativas visuais?

Para saber o motivo da tristeza repentina do nobre cavaleiro, as crianças terão de chegar ao final desta história criada por Renato Moriconi.


 

O livro-imagem no Brasil 

Considerado o primeiro livro-imagem brasileiro, Ida e volta, de Juarez Machado (1976), um divertido conto de expectativas que narra um passeio de uma personagem da qual o leitor nunca vê o rosto, somente os passos. Publicado em um momento de efervescência para a literatura ilustrada, a obra de Juarez foi também a primeira a ganhar o prêmio de Melhor Livro Sem Texto, categoria criada pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) somente cinco anos depois de sua publicação, em 1981, e também marcou o início de um olhar para a importância da imagem na literatura ilustrada. 

Os anos 1980 se destacam nessa cronologia por fazer despontar alguns dos mais expressivos artistas do livro-imagem nacional, como Angela-Lago, autora de Outra vez (1982), e Eva Furnari, que criou os quatro títulos da Coleção Peixe Vivo (1980). É também de Angela-Lago um dos celebrados livros sem palavras brasileiro, Cântico dos cânticos (1992), que toma para si a missão de contar em imagens a história do Antigo Testamento de Salomão.

Já no transcorrer dos anos 1990 e 2000, o livro-imagem brasileiro viveu um momento de baixa, em parte por conta do contexto das escolas a partir da reforma educacional de 1997, quando os livros passaram a ser classificados em faixas etárias, priorizando as narrativas verbais com potencial pedagógico. Foi somente na virada do século 20 para o 21 que o livro-imagem ganhou novamente espaço, explorando possibilidades artísticas de experimentação. 

Quem oferece esse panorama histórico que brevemente resumimos aqui são os professores Luis Girão e Elizabeth Cardoso, no artigo O livro-imagem na literatura para crianças e jovens: trajetórias e perspectivas. Desde então, as tais narrativas visuais vem se reacomodando em um cenário sempre orgânico e em constante movimento. 

Chamando atenção para um dos aspectos preferidos das crianças ao tomarem contato com o livro, o carrossel colorido que centraliza a história, Girão e Cardoso situam Bárbaro em um lugar de relevância para a retomada do experimento não só com a linguagem, mas com a materialidade do objeto livro-imagem: “Com o virar das páginas, as personagens aparecem ora na página direita, no canto superior, ora na página esquerda, no canto inferior, criando uma continuidade previsível para a linearidade do objeto livro, porém, tudo se passa em um códex alongado verticalmente e conciso em largura, o que replica uma circularidade no eixo central do livro, no encontro dos cadernos que formam o códex, à semelhança de um carrossel”.


 

5 dicas para ler um livro-imagem

Confira algumas possibilidades que podem ser utilizadas na hora de ler um livro sem palavras com as crianças e – por que não? – para si mesmo.

1. Confie no leitor

É muito comum que a pessoa que lê para uma outra crie expectativas de como aquele alguém deve interpretar uma cena ou um detalhe do livro. No livro-imagem, como em qualquer outra modalidade de leitura, o tempo é de cada um. 

2. Acolha os silêncios

O livro-imagem tem um tempo próprio, em que a leitura acontece na imaginação de cada leitor. Então, assim como não é preciso apressar e nem determinar caminhos únicos, os silêncios são mais que bem-vindos, eles podem compor um elemento da narrativa.

3. Toda história é possível

É comum que os livros de imagem contenham elementos de humor ou ironia, que jogam com a emoção e os detalhes subentendidos para criar a história. Cada leitor, de acordo com seu próprio repertório, vai ler isso tudo de um jeito diferente. Então, não tem história certa ou errada, e nem narrativa única. 

4. Desconfie da voz narrativa

A história que o autor criou pode sim ser diferente da sua. Isso porque, no livro-imagem, a narrativa também se modifica na leitura. Então, ao ler um livro sem palavras, pode brincar à vontade com os caminhos de interpretação narrativa e até desconfiar se o livro quis mesmo dizer aquilo que a maioria pode pensar.

5. Cada detalhe conta

E conta mesmo, às vezes a narrativa está toda “escondida” em um detalhe que passou despercebido. E aí vem uma das partes mais entusiasmantes do livro-imagem: ler de novo! Se em outras categorias narrativas isso já é permitido, aqui é ainda mais. Em uma segunda leitura, uma outra nova história pode emergir. É como diz Irena Freitas: “Eu aprendi muito lendo e relendo livros ilustrados. Tem tantos detalhes que não estão no texto que, às vezes, deixamos passar batido”.

 

As contribuições do livro-imagem: confira entrevista com Renata Junqueira

Quais as contribuições específicas das narrativas estritamente visuais para crianças e jovens? Ou seja, quais os ganhos de se ler uma história narrada por imagens?

Renata Junqueira: Uma narrativa de imagens pode contribuir em vários aspectos para a formação do leitor: visualizar a história, segui-la com os olhos, perguntar em uma página e buscar a resposta na próxima. Além de motivar a criança, aos poucos vai formando sua consciência a respeito da estrutura do texto narrativo. 

Alguns adultos podem ter uma espécie de medo dos livros-imagem, por não saberem como mediá-los com as crianças. Como romper com essa ideia de que livros de imagem são difíceis, e por que você considera que isso acontece?

Renata Junqueira: Os livros de imagem não precisam causar medo seja em casa com a mediação dos pais, seja na escola com os professores. O importante é que ambos percebam o movimento das imagens, que na mediação deixem as crianças livres para imaginarem, dando tempo no movimento de virar para a página seguinte. 

Infelizmente, tal dificuldade talvez esteja refletida no fato de os professores não terem tido formação inicial ou continuada para compreender os diversos tipos de livros infantis, para entender o valor da imagem e, no caso do livro-imagem, o movimento das ilustrações que vão auxiliar na mediação e na atribuição de sentidos ao texto visual. 

Há nomenclaturas diversas para o “livro-imagem”, que dependem de perspectivas teóricas e metodológicas. Como você vê essa variedade de nomenclaturas, em relação à chegada dos livros às mãos do leitor? Eles influenciam na circulação e recepção do livro?

Renata Junqueira: Ainda tem-se a nomenclatura wordless books, utilizada por docentes estadunidenses que pesquisam a literatura infantil. No entanto, as diversas nomenclaturas estão ligadas aos países em que elas aparecem e aos pesquisadores que estudam o livro sem texto verbal. Na recepção infantil, isso não fará muita diferença, pois quando o texto chega na mão das crianças, é a sua curiosidade que vai movê-la para leitura. Por isso, a importância do mediador como aquele leitor mais experiente que vai chamar atenção do leitor a partir da capa, suscitando inferências e a vontade de prosseguir e entrar dentro do livro.  

“A maioria das crianças para quem eu mostro a história [de Bárbaro] se surpreendem, vêm com ideias próprias", conta Renato Moriconi.

Como Bárbaro se situa no – ainda tão recente – cenário do livro ilustrado brasileiro, do ponto de vista dos estudos teóricos e crítica literária? 

Renata Junqueira: Bárbaro tem uma importância histórica, pois trata de um texto de imagem em que o leitor/criança vai construindo a narrativa. Existe toda a estrutura do texto narrativo, situação inicial, ações, problema e solução do problema partindo para o desfecho. Além de aproximar a criança de seu mundo e surpreender o leitor ao final da história.

Do seu ponto de vista enquanto pesquisadora, o que faz de Bárbaro um sucesso entre crianças e adultos? Dez anos depois de seu surgimento, podemos dizer que é um clássico contemporâneo do livro-imagem no país?

Renata Junqueira: Sim, podemos dizer que é um livro que não envelhece e isso é porque é literatura. Cada criança que lê-lo vai sentir as emoções que a história suscita. Vai se sentir o Bárbaro lutando com flechas, dragões, monstros para ao final ser surpreendida com um brinquedo e uma situação cotidiana em toda infância. Essa aproximação é fértil para a imaginação infantil e para a vontade de prosseguir a leitura. Viva Bárbaro, Viva Moriconi! Viva a literatura infantil!

 

(Texto: Renata Penzani)

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