Aporofobia: um preconceito que precisa ser falado e combatido

25/09/2023

Talvez você não tenha ouvido a palavra aporofobia. Nem saiba o que ela significa. Mas é bem provável que já tenha presenciado ou conheça esse sentimento. Aporofobia é um neologismo. Uma nova palavra inventada para designar um velho preconceito: a aversão aos pobres. Quem cunhou o termo foi a filósofa espanhola Adela Cortina, professora de Filosofia Moral da Universidade de Valença, que define a aporofobia como: “a rejeição sistêmica à pobreza e às pessoas sem recursos”. Em 2017, aporofobia foi escolhida pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA) como palavra do ano e ganhou as manchetes de jornais e títulos de livros. 

llustração do livro Aporofobia, uma parceira entre padre Júlio Lancellotti, Blandina Franco e Lolo

llustração do livro Aporofobia, uma parceira entre padre Júlio Lancellotti, Blandina Franco e José Carlos Lollo

 

Aqui no Brasil, as reflexões sobre aporofobia têm, aos poucos, conquistado espaço. E uma das vozes que mais sobressaem nesse coro é a do padre Júlio Lancellotti, que participou do livro Aporofobia, lançado por Blandina Franco e José Carlos Lollo, experientes em abordar temas difíceis - seja para falar da melancolia de Ernesto ou da explosão que provoca A raiva.

Aporofobia ilustra de forma sensível o que tantas pessoas em situação de vulnerabilidade vivem na pele todos os dias. O livro mostra o preconceito despejado sobre uma família em situação de rua, evidenciando a crueldade de frases que todos já ouvimos - e muitas vezes já pensamos - ao encontrarmos quem vive em situação de rua. "Esse pessoal atrapalha o trânsito". "São fedidos". "Devem ter feito más escolhas." Enxergar como insultos assim podem ferir é o primeiro passo para despertar nas crianças a compaixão: um ingrediente essencial para dar início ao processo de educação que é a chave para combater qualquer tipo de preconceito.

A ideia do livro surgiu do próprio padre Júlio, após ele indicar durante uma missa a obra Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes, que fala sobre o poder de um menino em enxergar as pessoas que cotidianamente são ignoradas pela sociedade. O padre procurou a Companhia das Letrinhas e lançou o convite-desafio de a editora produzir uma obra específica sobre aporofobia para o público infantil. Blandina Franco e José Carlos Lollo foram convidados para desenvolverem o projeto, e do convite surgiram dois livros igualmente impactantes: Aporofobia, publicado dentro da coleção Canoa (de livros a preços acessíveis), e Os pombos (a ser lançado em novembro, mas já em pré-venda).

Capa de Aporofobia, de Blandina Franco e José Carlos Lollo, com participação do padre Júlio Lancellotti

Capa de Aporofobia, de Blandina Franco e José Carlos Lollo, com participação do padre Júlio Lancellotti, que fala sobre o preconceito contra pessoas pobres

 

Blandina conta que ela e Lollo enxergaram de cara a importância da proposta e fizeram uma visita ao projeto que o padre Júlio realiza na Paróquia São Miguel Arcanjo, em São Paulo (SP). "Ali, todos conversam, expõem seus problemas, pedem ajuda. O padre distribui, além do pão, roupas e material de higiene, mas principalmente ouve, responde, orienta e conversa com aquelas pessoas a quem falta tanto. E foi ouvindo essas conversas, esse desabafo dessas pessoas que começamos a entender melhor o que eles sentem e a conhecer um pouco, bem pouco, o que é a realidade deles", relata a autora.

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Dois livros, um mesmo tema e muito o que falar

 

Em Aporofobia, uma família em situação de rua procura um lugar para ficar, mas o que encontram é exclusão e expulsão, tanto da arquitetura da cidade como da sociedade. Primeiro, deparam-se com grades nos bancos, que impossibilitam uma pessoa de se deitar, e com pedras nos vãos dos viadutos, que impedem a permanência de colchões ou barracas. Depois, são alvo de preconceitos atirados por quem passa por ali, como os descritos mais acima. A cada página, palavras como "ninguém", "medo", "lixo", "fingimento" caem sobre a família, em um amontoado de estereótipos e hostilidade. Mas nenhuma delas pertence à família, que se levanta e as retira de cima de si, a não ser por uma: aporofobia.

 

Capa do livro Os pombos, uma metáfora sobre pessoas em situação de rua, de Blandina Franco e Lollo

Neste livro, também em parceria com o Padre Júlio Lancelloti, os autores Blandina Franco e Lollo recorrem a uma metáfora para falar sobre o tratamento que damos a pessoas em situação de rua

 

Já em Os pombos, a escolha dos personagens estabelece a primeira metáfora e também o primeiro mal-estar: afinal, os pombos são as aves que lotam as praças das cidades e são vistas como sujas e portadoras de doenças. Com sensibilidade, Blandina e Lollo relatam a chegada desses animais à cidade e como eles foram sendo marginalizados. Quando não são invisibilizados em suas necessidasdes, são mal-vistos por sujarem as ruas, atrapalharem o trânsito, atacarem. Os autores escrevem que "as pessoas falam com cachorros, mas ninguém quer falar com eles (os pombos). Ninguém quer saber deles. Ninguém olha nos olhos deles." E o que poderia ser apenas sobre a relação entre humanos e aves que superpopulam os grandes centros urbanos é, na verdade, uma relação entre humanos e humanos, que só gostariam de ser vistos e tratados como tal. 

 

Aversão aos pobres é negação à subjetividade

Uma das bandeiras mais frequentes levantadas pelo padre Júlio é a negação da subjetividade às pessoas em situação de vulnerabilidade. Ela abarca aquilo que há dentro de cada um e que nos define: pensamentos, sentimentos, desejos, identidade. É o que faz com que cada pessoa de torne única e seja reconhecida.

 

Ninguém pergunta para uma pessoa em situação de rua o que ela sente, o que ela pensa. Ninguém diz 'que bom que você veio', 'estava com saudade de você'. Tudo que essas pessoas sentem é negado.
(Padre Júlio Lancellotti)

 

Para Paulo Escobar, que é sociólogo, convive com a população de rua há 23 anos e coordena o Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga, a perda da subjetividade abarca muitos aspectos: da negação ao acesso à moradia e à água até o direito de amar e se relacionar. “Os pobres não têm acesso à diversão, cultura, sexualidade, e são sempre julgados de uma forma moralista pela sociedade. A subjetividade é um privilégio de quem pode pagar”, afirma. Quem nunca ouviu comentários sobre pessoas em situação de vulnerabilidade como: “Pedindo dinheiro na rua, mas tá de cabelo tingido, né?” ou “Nossa, não tem nem o que comer e ainda bota filho no mundo”.  É como se pessoas pobres não tivessem direito ao afeto, à beleza, à sexualidade, nem mesmo a construir uma família.

Para a psicanalista Camila Deneno Perez, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e docente no Curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos, a negação da subjetividade é perigosa, porque historicamente é que o pavimenta o caminho para que sejam cometidas as maiores atrocidades, como aconteceu na escravidão - e continua acontecendo com o racismo. “Desconsiderar um sujeito como ser pensante, que sente e que tem direitos é uma tentativa de anular sua potência política e desejante, uma forma de controle que promove objetificação e silenciamento”, explica.

O sentimento de exclusão é devastador. Porque ele diz a todo tempo que você não faz parte, que você é menos do que os outros.
(Sabrina Veloso, psicóloga e psicanalista)

Vale lembrar ainda que a aporofobia é uma espécie de catalisador, acentuando os preconceitos já existentes. Pessoas negras são vítimas de racismo. Mas se forem pobres e negras sofrem muito mais, como explica o conceito de interseccionalidade (na intersecção de discriminações derivadas de marcadores sociais de diferença, como raça e classe social). O mesmo se aplica a preconceitos relacionados a gênero, orientação sexual e xenofobia - basta reparar na diferença de tratamento entre europeus e americanos que vêm fazer turismo e os imigrantes venezuelanos, bolivianos, angolanos que muitas vezes chegam ao país como refugiados.

Ilustração do livro Os pombos, uma metáfora sobre o preconceito contra pessoas pobres e em situação de vulnerabilidade

Ilustração do livro Os pombos, uma metáfora sobre o preconceito contra pessoas pobres e em situação de vulnerabilidade

 

Quando sobra preconceito, falta empatia

Mas o que explica a hostilidade aos pobres? 

De um lado, quando olhamos para nossos valores como sociedade, buscando o lucro e a produtividade apoiados no ideal da meritocracia, é fácil identificar como o discurso vigente colabora para ressaltar a superioridade de uma minoria. “Ridicularizar o pobre tem a ver com a construção de uma ideia equivocada de que o sucesso do indivíduo, bem como o seu fracasso, são decorrentes de sua responsabilidade individual, descolados de sua estrutura social”, explica Sabrina Veloso, psicóloga, psicanalista e moradora do bairro Santa Cecília, em São Paulo (SP). É fácil identificar na mídia personagens que caricaturizam os pobres como Caco Antibes, interpretado por Miguel Falabela.

Em paralelo, figuras de influencers, artistas, milionários excêntricos - que vivem uma vida completamente desconectada da maioria da população - conquistam milhões de seguidores nas redes sociais e movimentam ações de marketing milionárias, aproveitando do desejo alheio de querer pertencer também a esse universo.

Mas por que será que é tão fácil se sentir conectado a quem parece estar no topo do sucesso e experimentar uma profunda repulsa por aqueles que vivem à margem? Para além do fator social, do ponto de vista da psicanálise, há que se refletir sobre de que forma esse outro, tão vulnerável, espelha o que há em nós mesmos.

“Sabemos desde Freud que aquilo que rechaçamos, menosprezamos, nos diz respeito. Nesse sentido, a falta de compaixão não se explica a partir do que é considerado diferente de mim, mas pelo incômodo produzido por aquilo que é estranhamente familiar. Como diz Toni Morrison: 'O risco de sentir empatia pelo estrangeiro é a possibilidade de se tornar estrangeiro”, explica Camila. Essa dicotomia nos faz perder a possibilidade de enxergar nuances, de acolher o que é diferente, de reconhecer que há várias formas de existir no mundo - e não apenas ser um vencedor ou um fracassado.

Para Sabrina, essa aversão ao pobre é a revelação do horror que sentimos sobre o nosso próprio desamparo e a consciência sobre nossa finitude, que alimentam esse movimento quase negacionista de não olhar para as fragilidades que todos nós carregamos. “É uma recusa de perceber essas dimensões humanas que são mais doloridas: a decepção, o fracasso, a falibilidade, o risco que todos corremos todos os dias, de fazermos coisas erradas, de nos enganarmos, de adoecermos", explica a psicóloga.

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Como fazer brotar empatia no lugar da aversão 

Se nem mesmo as religiões, que pregam caridade e amor ao próximo, são capazes de despertar a empatia e a compaixão, qual seria o antídoto, então? Para o padre Júlio, estamos falando de uma questão humana, que vai muito além do que pregam as religiões e igrejas. “A questão religiosa reproduz o que está na sociedade como um todo. As igrejas e religiões não estão isentas de preconceito, de discriminação, da aporofobia. São questões humanas – nós, humanos, é deveríamos ser menos preconceituosos”, comenta.

Para o padre, o caminho é se predispor a uma jornada de educação. “Adela (a filósofa espanhola que curou o termo aporofobia) diz que é preciso sair de tudo aquilo que é negligência, hostilidade para a hospitalidade. É um processo educativo longo, complexo”, conclui. Por isso, é importante que as famílias se empenhem em sensibilizar as crianças, mostrando as injustiças do mundo e fazendo brotar a compaixão.

Os livros, é claro, podem ajudar nessa missão. Mas o exemplo vale muito mais. “Quando viramos o rosto, constrangidos, ao passar por uma pessoa faminta em situação de rua, não queremos encarar que algo em nossas formas de organização social não está funcionando. Quando culpabilizamos pais que levam os pequenos para pedir dinheiro nos semáforos, não queremos assumir a responsabilidade que todos temos em relação às infâncias brasileiras”, alerta a psicóloga Camila. Para ela, abordar esse tema com as crianças, dentro de casa, é também uma possibilidade de oferecer esse vislumbre da complexidade do mundo, por mais que isso englobe diversos desconfortos - afinal, não é fácil falar de miséria, de injustiça, de desigualdade.

Em Aporofobia, vemos uma série de insultos despejados sobre uma família em situação de vulnerabilidade

Em Aporofobia, vemos uma série de insultos despejados sobre uma família em situação de vulnerabilidade

Mas sustentar esse mal-estar frente às crianças é importante. "Se nos apressamos em responder, para aplacar a nossa própria angústia, tendemos a simplificações. Ficamos aprisionados a uma única visão de mundo e, de forma mais ou menos consciente, a transmitimos às próximas gerações. A empatia exige justamente abertura: estar vulnerável ao impacto causado pelo encontro com o outro", ressalta a psicóloga.

Talvez o primeiro passo seja justamente esse: reconhecer que o crime é a pobreza, e não ser pobre.

É preciso culpar a estrutura que gera o pobre, não o pobre em si (Paulo Escobar, sociólogo)

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Pobreza no Brasil: uma regra, não exceção

Em 2021, o Brasil atingiu o recorde de pobreza, somando 62,5 milhões de pessoas, ou seja, 29,4% da população do país na época - o maior número absoluto e percentual desde o início da série história, em 2012. Esse número, hoje, corresponderia às populações atuais do Chile, Bolívia e Uruguai somadas. Entre esses pobres, 17,9 milhões (ou 8,4% da população) estavam na faixa de extrema pobreza - aquela em que se vive com menos de 2,15 dólares por dia; na conversão, menos de 10,60 reais. 

No mundo, a crise do custo de vida fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU) ampliasse o olhar sobre a pobreza construindo o Global Multidimensional Poverty Index ou “índice de pobreza multidimensional”, em tradução livre. Ele considera, além da renda, outras privações que caracterizam a pobreza, como a restrição do acesso à saúde e à educação de qualidade.  O relatório de 2023 aponta que 1,2 bilhão de pessoas em 111 países em desenvolvimento vivem em situação de pobreza multidimensional aguda.

E nem as crianças são poupadas. Dados recentes das Nações Unidas e do Banco Mundial apontam que uma em cada seis crianças é obrigada a viver em condições de extrema pobreza. São 333 milhões de crianças no mundo vivendo dessa forma. Não dá para ficar indiferente a essa realidade, não dá para não enxergar essas necessidades, não dá para não falar sobre as desigualdades e sobre o preconceito. "Que este livro e sua emotiva história nos convidem à mudança e a transformações", escreve o padre Júlio na contracapa de Os pombos.

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