Jornada Pedagógica 2024 encerra a programação levantando a bandeira da luta antirracista na literatura e na escola

12/04/2024

 

O último dia da Jornada Pedagógica 2024 trouxe grandes reflexões acerca do papel da literatura e da escola no combate ao racismo. A primeira mesa, intitulada Leitura literária nos 20 e 15 anos de implementação das leis n. 10.639 e n. 11.645, fez uma potente revisão da aplicabilidade das normativas que garantiram a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena na escola. O debate teve a participação da pedagoga e arte-educadora Madu Costa, da escritora e educadora Waldete Tristão e da pesquisadora e ativista indígena Cláudia Maria. A mediação foi do professor e gestor educacional Davi do Carmo Ferreira. 

Ilustração de Amoras, livro de Emicida ilustrado por Aldo Fabrini

Ilustração de Amoras, livro de Emicida ilustrado por Aldo Fabrini

Já a segunda mesa falou sobre Literatura e Preconceito, dando ao tema da discriminação uma perspectiva de ação. O que fazer ao se deparar com situações de racismo na literatura? Como conduzir situações de preconceito no dia a dia da escola? Fizeram parte das discussões Leandro Karnal, historiador, professor, escritor e um dos grandes pensadores da atualidade, ao lado de Luiz Estevam, professor e escritor. Ambos publicaram o livro Preconceito: Uma História (Companhia das Letras, 2023). O livro é um convite para a desconstrução de aprendizados culturais que perpetuam o sofrimento de pessoas tidas como diferentes da norma padrão colonizadora.

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20 anos que mudaram a história. Será?

O tema da primeira mesa trouxe importantes contribuições na busca por uma educação antirracista, com um olhar para as leis 10.639 e 11.645. Ambas dizem respeito à obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena nas escolas. No debate, as normativas foram revisitadas e questionadas, sob um viés propositivo para sua implementação prática - sobretudo no comprometimento dos profissionais da educação com sua aplicação. Para iniciar a discussão, o professor e mediador da mesa, Davi do Carmo Ferreira, questionou como as convidadas avaliam o uso da literatura nesse processo e se essa lei vem, de fato, sendo aplicada. 

Participantes da primeira mesa do última diua da Jornada Pedagógica 2024

Madu Costa, Waldete Tristão e Cláudia Maria com mediação de Davi do Carmo Ferreira na primeira mesa

A primeira convidada para o debate, arte-educadora e pedagoga Madu Costa contou sobre sua trajetória como professora na rede pública e como as discussões raciais foram se transformando ao longo dos anos. “Me aposentei em 2014. Quando comecei em sala de aula, já era uma professora inquieta com essas questões excludentes na escola e já travava conflitos com aquela organização escolar que não me enxergava, como professora negra, e não enxergava os alunos negros. Nessa época, eu já propunha uma pedagogia antirracista, mesmo não tendo o aparato das leis. Era um aparato pragmático de quem sentia na pele essas questões”, disse ela.

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Madu compartilhou seu esforço em deslocar o eixo eurocêntrico de representatividade, trazendo novos olhares para a sala de aula. “É claro que 20 anos de lei não vão resolver o problema do racismo, da estrutura que vem sendo tensionada há muitos anos no país. Por isso, os educadores têm que ter a consciência de que está nas nossas mãos essa mudança de paradigma. É preciso um esforço para se fazer cumprir a lei”, contou ela. A professora ainda falou sobre a literatura como ferramenta importante nesse processo e da abertura do mercado editorial reforçando esse papel.

“Não é só quantidade de obras, temos que pensar na qualidade do que se está ensinando aos alunos. Por isso, é preciso que os educadores sejam também leitores. O racismo ainda existe, mas nas escolas ele está balançado. Isso porque a literatura é arte, e arte cura. Se a gente considerar o racismo como uma doença social, o remédio tá aí”. Madu Costa

Já a educadora e escritora Waldete Tristão, segunda convidada da mesa, trouxe um itã – relato da cultura iorubá - que fala sobre a busca pela perfeição. Para ela, é impossível falar em educação antirracista sem falar de formação de professores. A professora trouxe o estudo realizado pelo Instituto Alana em parceria com o Geledés, que mostra que 71% das escolas não tinham nenhuma ação com foco no cumprimento das leis, e que as ações encontradas eram inconsistentes e pontuais.

“Falar sobre a lei não é uma decisão particular ou de pessoas negras que querem que esse conteúdo chegue nas crianças. Estamos falando do direito de as pessoas acessarem esse conhecimento. Precisamos romper com essa perspectiva colonial de que só existe um paradigma”. Wladete Tristão

Ela lembra que o itã contado falava sobre a busca por perfeição, e que essa busca deve ser constante, assim como a busca por um mundo antirracista. A educadora também trouxe a importância de acessar a literatura, e lembrou que quando começou a lecionar, havia pouquíssimos livros em que as crianças pretas se vissem representadas. “O contato com a arte também nos constitui, a gente se vê pelo outro. Para além da lei, as escolas têm a responsabilidade de proporcionar às crianças uma visão decolonial, para que elas tenham acesso ao papel dos anciãos e dos guardadores da memória histórica dos diferentes povos. E pra isso, é preciso falar sobre formação inicial e continuada de professores e educadores”, finalizou ela.

A última convidada da mesa, Cláudia Almeida, ativista indígena, falou sobre o quanto a literatura indígena é resistência. “Nossos escritos vão registrar a nossa oralidade, que é a representação da nossa própria existência”, disse ela. Ainda, Cláudia lembrou que a cultura indígena passa por um apagamento e silenciamento dentro do ambiente escolar de forma proposital. A ativista falou sobre o papel da literatura nesse processo, e sobre o quanto os professores são essenciais neste momento.

“Nós não podemos nos conformar com uma única história. Da mesma forma, precisamos de comprometimento para apresentar essa visão decolonial para os alunos. Não podemos contribuir nesse processo de apagamento. Por isso encontros como esses são tão importantes, para que possamos falar a respeito do assunto e apresentar novas histórias”. Cláudia Almeida

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Preconceito e literatura

Leandro Karnal e Luiz Estevam no encerramento da Jornada Pedagógica 2024, com mediação de Rafaela Deiab

Leandro Karnal e Luiz Estevam no encerramento da Jornada Pedagógica 2024, com mediação de Rafaela Deiab

Na segunda mesa da noite, Leandro Karnal e Luiz Estevam estiveram juntos para falar sobre o tema do preconceito e propor ações que tenham a literatura como ferramenta para combater o preconceito. Ambos publicaram o livro Preconceito: Uma História (Companhia das Letras, 2023), que faz um resgate da história do preconceito e busca desconstruir paradigmas sociais.

Karnal abriu as discussões dizendo que a literatura é uma ótima ferramenta para analisar o preconceito. Adentrando na discussão racial, o pensador trouxe duas obras literárias brasileiras para demonstrar o quanto eles refletem suas épocas e que sinais eles trazem sobre o preconceito na sociedade brasileira. A primeira é o livro O Mulato, de Aluísio de Azevedo, que conta a história de Raimundo, filho de uma mãe escravizada e que possui olhos azuis, estudo, com inteligência acima da média e que, ao se apaixonar por uma mulher branca, nota que há um código silencioso que o exclui da sociedade. Na sequência, o autor lembra que a história do livro mostra que o preconceito não depende do comportamento, da formação das pessoas. É uma concepção prévia produzida sem qualquer base científica. 

A segunda obra abordada por Karnal foi O Avesso da Pele (Companhia das Letras, 2020), de Jefferson Tenório. O professor lembra que a história do livro também traz alguém em busca do seu passado, que percebe que não importa seu grau de conhecimento ou de educação - o que motiva a violência é a cor da pele. “As duas obras são excelentes ferramentas para se trabalhar em sala de aula, pois podem ser abordadas de uma forma mais complexa com alunos do Ensino Médio, por exemplo, e com alunos do Fundamental, que precisam ter essas reflexões”, disse ele. Ele lembrou o episódio recente envolvendo a obra de Tenório, que foi censurada em alguns estados. “A polêmica girou em torno do uso de palavrões na obra. Mas, ora, será que são os palavrões que incomodam ou é a denúncia que o autor faz e não quer ser vista?”, disse ele.

Na sequência, Luis Estevam, que também se valeu de grandes obras durante sua fala, trouxe a questão do sexismo para debater o preconceito. Para isso, falou de Lisístrata, um famosa comédia do Aristófanes, e o quanto as mulheres eram ridicularizadas ao participarem da vida social. “É justamente da inversão que acontece na obra, em que as mulheres conseguem acabar com a guerra, que se fez a comédia. As pessoas achavam muito engraçado, até ridículo as mulheres estarem à frente de questões da sociedade”, disse ele. Ainda, o autor citou remontagens, traduções e alusões à obra grega no Brasil e falou sobre o quanto a literatura pode contribuir para que a sociedade seja cada vez menos preconceituosa. Durante as perguntas com os participantes da Jornada, os autores puderam refletir sobre o cânone literário.

“Basta citar que o nosso maior escritor de prosa no Brasil teve que fazer um esforço para ter sua imagem restaurada e então descobrirmos um Machado de Assis negro. Se todo mundo tivesse lido Carolina Maria de Jesus ou Maria Firmina dos Reis o cenário seria outro. Mas o fato é que o cânone é decidido por homens brancos. É muito importante quebrar a hegemonia estética do cânone ocidental, que criou uma política de cotas para homens brancos que vigora há anos." Luis Estevam 

Estevam ainda lembrou que hoje existe uma preocupação e que vestibulares, por exemplo, já vêm incluindo obras mais diversificadas nesse sentido. “A Unicamp, por exemplo, incluiu Racionais como obra literária obrigatória. E muita gente criticou essa decisão. Basta lembrar que as obras modernistas, reverenciadas atualmente, eram consideradas obras ruins em suas épocas”, lembrou ele.

Para finalizar, os professores trouxeram suas visões sobre o uso ou não das obras de Monteiro Lobato. “Essa é uma visão muito particular minha, mas entendo que não deve ser excluído de forma alguma. Pois se estamos falando de excluir obras preconceituosas, temos que tirar a Bíblia e tantas outras. Não há nenhum problema em olhar para uma obra e mostrar para os alunos que ali existe o preconceito. Assim como ler os textos do jesuíta Padre Vieira e apontar que aquela era a posição daquele homem e que hoje já não é mais a nossa. Tenho certeza que os alunos não são bonecos que recebem algo e automaticamente viram aquilo. É preciso ensiná-los a pensar de forma crítica”, defendeu Karnal. Estevam concordou e reiterou: “não dá pra ignorar, temos que trazer luz sobre o assunto e problematizar”.

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