Dipacho: "O que mais admiro nas crianças é a capacidade de perdoar"

24/04/2024

3.234 quilômetros. Essa é a distância que separa o Brasil e a Colômbia. Se tivéssemos asas, talvez conseguíssemos chegar lá rapidinho. Mas não é preciso imaginar estar na pele de um pássaro ou de um avião para alcançar esse território – tão longe e tão perto.Os livros do ilustrador colombiano Dipacho nos conduzem nessa travessia. Uns e Outros (Companhia das Letrinhas, 2024), seu último lançamento, é uma dessas obras que encurtam distâncias costurando as diferenças de forma poética. Mostrando diversas formas de existir e se relacionar, Dipacho cria unidade a partir de contrastes, como quem tece uma grande colcha de retalhos, e nos aproxima de algo que todos buscamos: pertencer.

Uns e Outros se inspirou em acontecimentos reais. Em 2020, enquanto o mundo atravessava a solidão do confinamento imposto pela pandemia de Covid-19, Dipacho resolveu olhar para suas relações e, mais além, para as relações de suas relações. Em outras palavras, o autor estava interessado não só em observar como ele se dava com os amigos e a família, mas também em perceber como eles próprios se relacionavam entre si e com os outros. Para ele, a qualidade das relações em boa medida dita a saúde de uma pessoa e de uma sociedade. Não por acaso, a alteridade é tema de muitas de suas criações: esse misterioso “eu” que nos habita e orbita cada uma de nossas relações, inclusive as mais íntimas. 

 

Ilustração de

Uns e outros cria unidade mostrando contrastes entre as diversas formas de existir

Formado em design gráfico, Dipacho conheceu o universo dos livros ilustrados há cerca de 20 anos, quando pesquisava sobre pintura e artes visuais na Biblioteca Virgilio Barco, em Bogotá, uma instituição pública que fica dentro do Parque Simón Bolivar, hoje um importante centro cultural da cidade. Desde então, não parou de mergulhar na produção desse tipo de obra, em que imagens e palavras se articulam com o design para compor a narrativa. Já são 20 títulos publicados como ilustrador-autor, com traduções na América Latina (Colômbia, Brasil, Chile, Argentina, México e outros), Europa (Espanha e França) e Estados Unidos.O interesse por subjetividades e lugares desconhecidos sempre foi uma mola para sua criatividade, com a inquietude de quem observa o mundo e não só vê como ele é, mas questiona como poderia ser. Além de escritor e ilustrador, Dipacho é também designer de jogos, algo que também tem um germe lá na infância. 

Dipacho é uma mistura do seu primeiro e segundo nome, Diego e “Pacho” (que é como se apelidam os Franciscos na Colômbia, como o nosso “Chico”). Diego Francisco Sánchez Rodríguez se rebatizou pelos livros e permite que cada leitor faça o mesmo, ao “pensar nas relações, na empatia, e na compreensão do outro”, como ele mesmo define. O escritor tem 39 anos, nasceu em Bogotá, e foi uma criança tranquila, confortável entre seus pares – da família aos amigos. Apesar de perceber-se quase sempre entre os menores do grupo, sabia se impor se precisasse. Ainda assim, oscilar entre identificação e estranhamento é algo que o acompanha desde sempre. 

 

O autor e ilustrador Dipacho

O autor e ilustrador Dipacho (Fonte: Instagram)

“Fui uma criança obcecada por mapas e bandeiras do mundo, desenhava muito e adorava jogos de tabuleiro, principalmente xadrez", Dipacho


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Juntos e separados: as diferentes formas de se relacionar

As aproximações entre culturas, rituais e espécies povoam não só as histórias, mas os interesses íntimos do artista, um eterno curioso pelo outro. Dipacho conversou com o Blog Letrinhas  sobre o novo livro, que faz do tuiuiú – ave que é o símbolo oficial do Pantanal – uma metáfora sobre a diversidade do ser. O modo como nos comunicamos, nossas vontades de mudança ou estabilidade, o que buscamos quando encontramos alguém. Tudo isso nos particulariza mas também nos iguala. Falamos também sobre infância e pluralidade cultural, sobre o cultivo de conexões afetivas ao longo da vida, e de como é urgente nutrir comportamentos de paz em tempos de guerra. Algo que, segundo ele, parece natural aprendermos com as crianças.

“Escrevo para aquela criança que fui e para aquela criança que não perdi e que carrego dentro de mim", Dipacho

 

Nos livros de Dipacho, o dilema pós-moderno que todos vivemos entre conexão real e distância física aparece de diversas maneiras, em personagens e conflitos que apontam contradições entre estarmos juntos e também separados. Perder-se e depois se encontrar; competir quando for preciso, mas também colaborar com o grupo. Nas criações do autor, reflexões sobre as dicotomias entre precisarmos nos relacionar, mas nem sempre sabermos o melhor jeito de fazer isso acabam virando histórias que nascem do que ele viveu e se multiplicam em outras experiências. 

 

“Em um mundo tão complexo e individualista, parece necessário gerar vínculos de apoio coletivo. Penso na terceira idade, e acho que uma boa velhice vai depender muito desses laços e amizades formadas ao longo da vida", Dipacho

 

Em Apesar de tudo (Companhia das Letrinhas, 2018), dois pinguins se dão conta de que amar demanda dedicação, paciência e parceria. Em Tartaruga (Companhia das Letrinhas, 2023) – criado em parceria com a escritora Ángela Cuartas – o leitor se depara com as peças que a memória (e a saudade) podem pregar, exaltando os detalhes que nos tornam únicos. Já em Uns e outros, são os tuiuiús que conduzem o olhar do leitor pelas diferenças. Enquanto uns ficam e fazem ninho, outros vão embora e recomeçam em outro lugar. Alguns vivem sempre em bando, outros precisam de momentos a sós.  

Ilustração de Dipacho na obra Uns e outros

O tuiuiu, ave bem brasileira, é o protagonista de Uns e outros


Os três livros tomam caminhos distintos em termos de construção narrativa, linguagem e formato, mas convergem em uma temática comum: o sentimento universal que surge da necessidade de vivermos juntos. 

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Um ponto comum em sua obra chama atenção: os personagens são sempre animais que ganham intencionalidade, sentimento, graça. Tem sapo, elefante, cachorro, baleia e, principalmente, muitas e muitas aves, que aparecem aos montes - de passarinhos a pinguins, passando por tucanos e flamingos. O tuiuiú, estrela de Uns e Outros, é conhecido por muitos nomes: jaburu, tuim-de-papo-vermelho e cauauá rei-dos-tuim. E na história, ilustra que, mesmo sendo parte de uma espécie, nem os animais precisam ser necessariamente iguais - as semelhanças convivem com inúmeras singularidades. Assim também acontece com o bicho-homem: brasileiros, colombianos, todos podem se reconhecer – ou se estranhar – nessas páginas. 


“Uns e outros reflete sobre como as famílias, os indivíduos, e os relacionamentos em geral, podem ser diferentes.” (Dipacho)


Confira a entrevista completa com Dipacho


Blog Letrinhas: Seus livros apresentam muitas formas de estar junto, que de alguma forma sempre confiam no afeto. No mundo de hoje, em que os laços comunitários estão cada vez mais frágeis, qual a importância dos relacionamentos?

Dipacho: É difícil para mim como criador pensar ou responder em termos acadêmicos, certamente outros profissionais têm palavras para falar sobre esses temas. Mas, falando do meu trabalho, o que faço é mostrar esses temas a partir das minhas experiências e reflexões de vida, posso falar e criar a partir do que conheço ou vivi. 

 

“Tenho interesse em pensar no outro, na diferença e em quem sou fora do meu contexto", Dipacho

 

Viajo muito e isso me obriga a sair da minha zona de conforto e pensar nas diversas relações, na empatia, e na compreensão do outro. Acho que esse tipo de reflexão é o que posso oferecer nos meus livros.


Blog Letrinhas: Viver em comunidades ou em condomínios isolados, estar perto ou distante de plantas e bichos, manter-se online ou afastar-se de comunicações virtualizadas. Tudo isso se coloca como possibilidade ou impossibilidade a depender de que posição a pessoa ocupa no sistema. Do seu ponto de vista, as histórias infantis são distópicas no sentido de imaginar outros modos de vivermos juntos?


Dipacho: Acho que imaginar outras formas de relacionamento gera esperança. Em um mundo tão complexo e individualista, parece necessário gerar vínculos de apoio coletivo. Penso na terceira idade, e acho que uma boa velhice vai depender muito desses laços e amizades formadas ao longo da vida. 

Olho para os meus amigos e colegas mais velhos e para as suas relações na velhice, e admiro o tipo de vínculos que eles geram, e as diferentes comunidades que podem surgir, não me parece tão distópico no final das contas.


Blog Letrinhas: Como o modo de se relacionar das crianças ensina os adultos?

Dipacho: O que mais admiro – e invejo – nas crianças é a capacidade de perdoar, de esquecer instantaneamente e não guardar rancor. 

“Num dia você briga com seu amigo, e no dia seguinte você já está brincando com ele. Se fosse assim na idade adulta, teríamos nos poupado de algumas guerras", Dipacho


Blog Letrinhas: Ainda falando das relações, como era o Dipacho criança? A infância que você viveu está nos seus personagens?

Dipacho: Minha infância está muito refletida nos meus livros, sim. Acho que escrevo para aquela criança que fui e para aquela criança que não perdi e que carrego dentro de mim. Fui uma criança obcecada por mapas e bandeiras do mundo, desenhava muito e adorava jogos de tabuleiro, principalmente xadrez. Eu era calmo e disciplinado, ia bem na escola, mas se alguém procurasse encrenca comigo eu respondia, apesar de ser pequeno.

Tenho um relacionamento muito bom com minha família desde criança e agradeço à vida por isso.


Blog Letrinhas: Você também atua projetando brincadeiras de tabuleiros. Como você vê a relação entre literatura e jogo? No seu caso, um influencia a produção do outro?

Dipacho: Nunca devemos parar de brincar. Ler e brincar são duas ótimas formas de fugir de nossas realidades de vez em quando, acho que fugir faz bem, por isso também gosto de viajar, pois desconectar alivia e recarrega as energias para continuar nossa rotina.

 

Ilustração de Uns e outros, de Dipacho

Diferenças são ilustradas como algo que pode aproximar em Uns e outros

 

“Estamos num mundo em que o trabalho e o consumo têm muitas vezes prioridade na vida das pessoas. A literatura e os jogos estão relacionados nesse sentido, porque podem substituir aquelas viagens que não podemos fazer fisicamente",  Dipacho


Para mim, criar uma obra é brincar, devo seguir algumas regras, ter uma estratégia e construir alguns mecanismos para que a obra (seja o jogo ou o livro) funcione. Se eu puder me divertir, terei vencido o jogo. Os processos criativos, tanto dos livros quanto dos jogos me ajudam a pensar e influenciam minha produção de forma geral, estão muito interligados.


Blog Letrinhas: Em termos culturais, não só literários, quais similaridades e diferenças você observa entre a Colômbia e o Brasil? Como essas aproximações ou distanciamentos atravessam a sua obra?

Dipacho: Depois de ter visitado cerca de quarenta países em diferentes continentes, descobri que o Brasil é o país mais parecido com a Colômbia e com o qual me sinto mais relacionado. Ambos são os países mais diversos do mundo, um em tamanho e outro em proporção. Temos comidas e músicas muito semelhantes. Acho que meu trabalho tem sido muito bem recebido no Brasil, porque falamos em termos e com experiências muito próximas.

 

“A mistura entre povos indígenas, afrodescendentes e europeus é muito marcante no Brasil e na Colômbia, essa mistura é perceptível na produção cultural", Dipacho

 

Blog Letrinhas: Seu novo livro no Brasil, Uns e outros, foi inspirado em uma experiência pessoal durante o período pandêmico, quando você voltou a viver com seus pais. Apesar do recorte íntimo, a história discute um cenário maior, o de ser gente e dividir o mundo com tantos diferentes de nós. Qual foi o papel da arte e da criação naquele momento delicado?

Dipacho: A pandemia me fez perceber o quanto nós, humanos, somos frágeis. E que a qualquer momento deixaremos de estar ali, ou um ente querido deixará de estar. Às vezes, podemos dar como certo que quem a gente gosta sempre estará conosco, mas a pandemia nos fez perceber que não é bem assim. E não estou falando apenas da morte, mas também da separação, da distância e dos sentimentos básicos de afeto e amor que são necessários para manter um relacionamento vivo. 

Muitas famílias se separaram, mudaram e deixaram de ser as mesmas. Uns e outros reflete sobre como as famílias, os indivíduos, e os relacionamentos em geral, podem ser diferentes. Criar o livro significou me forçar a pensar sobre o tema, sobre meu relacionamento com minha família e sobre o relacionamento familiar também dos meus amigos e conhecidos.


Blog Letrinhas: Uns e outros tem como personagem principal um tuiuiú – ou jaburu – uma ave conhecida no Brasil por sua relação com o Pantanal. Por que esses pássaros te instigaram nessa história?

Dipacho: O jaburu é uma ave muito conhecida no Brasil, mas é encontrada em toda a América Latina, e não é tão conhecida no resto do continente – pelo menos não no meu país. A Colômbia é o país com a maior diversidade de aves do mundo, mas as pessoas só conhecem algumas. Existem animais paradigmáticos que, pelo seu simbolismo, são mais utilizados na literatura infantil. Tenho interesse em aproveitar os desconhecidos, os que estão mais próximos de nós e que estão no nosso contexto, para que as pessoas os conheçam. 


Blog Letrinhas: A literatura latino-americana tem ganhado muito fôlego na última década, não só na criação artística, mas também na crítica literária. Gostaria de saber se você acompanha essa criação literária contemporânea para a infância, que artistas você tem lido e recomenda?

Dipacho: Eu me sentiria mal fazendo só uma pequena lista de autores latino-americanos para crianças, porque muitos ficariam de fora. Tenho um blog – dipacho.blogspot.com – no qual escrevo de vez em quando sobre ilustração e livros. Pretendo escrever sobre esses criadores, então, por enquanto vou deixar a intriga para vocês, mas admiro muitos, sim.


Blog Letrinhas: Por fim, o que é ser criança para você? E como evitamos ficar demasiadamente adultos?

Dipacho: Acho que o que as crianças fazem de melhor é brincar, a brincadeira é parte essencial de quem elas são. Adoro brincar e isso me permite ser mais criança – algo que aprecio e valorizo ​​muito.


(Texto: Renata Penzani)

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