O fenômeno da cultura coreana na literatura infantil

22/06/2022

Mais de 17 mil quilômetros separam o Brasil da Coreia do Sul. São necessárias 27 horas dentro de um avião para transcorrer esse trajeto. Porém, quando o assunto é superar distâncias, a subjetividade artística não conhece limites. A cultura coreana exerce um impacto cada vez maior do lado de cá do Oceano Índico. E nem só de K-POP ou produções audiovisuais adolescentes é feito esse fenômeno, que ganha mais e mais horas de voo. Prova disso é a chegada ao Brasil do livro Balas mágicas, da renomada escritora coreana Baek Heena, um convite à intimidade com os detalhes, típica do olhar infantil, e o sucesso da Trilogia da Margem de Suzy Lee.

 

Ilustração do livro Balas Mágicas, de Baek Heena

No livro, um menino compra um saco de balas mágicas e passa a ouvir novos sons, então tem que deixar a timidez de lado para encarar algumas conversas com pessoas e seres muito inusitados.

A literatura sul-coreana, especificamente os livros ilustrados voltados ao público infantil e juvenil, constitui grande parte desse reconhecimento que ganha o mundo. Suzy LeeBaek Heena, Shin-Don-jun, Hwang Sun-mi, Lee Tae-Jun. Não faltam exemplos de autores que contribuíram para o boom dos livros infantis coreanos. No ano de seu lançamento, em 2008, o livro Onda (editado no Brasil em 2017 em nova edição pela Companhia das Letrinhas), de Suzy Lee, primeiro título de uma série conhecida como Trilogia da Margem, vendeu mais de 100 mil cópias em todo o mundo, e já foi traduzido para o alemão, francês, espanhol, português e italiano - completam a Trilogia os livros Sombra e Espelho.

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Com universalidade cada vez mais reconhecida por críticos, pesquisadores e, claro, pelos leitores, os artistas do livro coreano são presença certeira nos eventos internacionais mais relevantes de livros infantis, e estão constantemente associados aos prêmios mais importantes dessa área, como o Hans Christian Andersen (considerado o Oscar do livro para a infância), o ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award, do qual Baek Heena foi ganhadora em 2020), o International Award Illustration e o Bologna Ragazzi Award. São premiações que não só apresentam uma curadoria do melhor da produção literária infantil internacional, mas também validam os elementos mais valorizados nesse segmento, considerando que a formação de novos leitores é algo valioso para o mercado literário.

A literatura infantil representa 47,8% das exportações de literatura da Coreia

 

A simplicidade sofisticada da literatura coreana 

Quais ingredientes conduzem a esse sucesso global? Quem já abriu um livro ilustrado coreano talvez possa palpitar sobre. A sutileza dos temas, a inteligência narrativa, a poética nas entrelinhas do texto, a dança entre palavra e imagem, a concisão. São muitas as características que sobressaem dessas histórias que, para a sorte do leitor, cada vez mais ultrapassam contornos culturais, linguísticos e geográficos para cativar leitores extra-continentes. 

Com a publicação de Balas mágicas pela Companhia das Letrinhas, primeiro título editado no Brasil da autora Baek Heena, conversamos com Luis Girão, pesquisador e tradutor de literatura coreana. O grupo que ele coordena, o ARA Cultural – Grupo de Tradução de Literatura Infantil Coreana da USP – foi o responsável por traduzir para o português o livro mais recente de Suzy Lee, e também o primeiro em que ela utiliza o texto verbal, Rio, o cão preto. Também é de autoria do grupo a tradução de Balas mágicas.

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Confira a entrevista completa!

O que você destaca de interessante/inovador na literatura da autora coreana Baek Heena, que estreia no Brasil com Balas mágicas, e por que apresentá-la aos leitores brasileiros?

Luis Girão – Em relação a explorar elementos materiais que os adultos pouco olham, mas que as crianças prestam atenção e se concentram, vivendo intensamente aquele instante, Baek Heena – ou Heena Baek – é um dos maiores exemplos disso! Ganhadora do ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award) em 2020, é uma artista plástica com formação complementar em animação e apaixonada pela técnica cinematográfica do stop motion, em que se monta e remonta cenas captando cada mínima mudança dessas cenas em frames, em fotografias.

E aqui destaco mais um dos diferenciais do trabalho de Baek Heena: o uso da fotografia como forma de compor suas narrativas pictóricas. Pouco vemos a fotografia em livros ilustrados, mas nas mãos de Baek Heena essa linguagem visual, conhecida por "congelar um instante", ganha movimento e duração de detalhes. Cada página dupla dos livros de Baek Heena proporciona ficar de frente para um frame que capturou uma cena montada num instante de ação potencial: as personagens, os cenários, as coisas, tudo em volta foi colocado intencionalmente ali, pensado e montado, intencionado para significar como se fossem ações de um cotidiano "congeladas". 

Quanto de brincadeira existe nessa encenação? Quantas memórias não são despertadas pelo nosso contato lúdico com papéis, bolas, lápis, pedaços de tecido, pedras, caixas de fósforos, e muitos outros. A criança encara os objetos "banais" como baús que guardam segredos, desvendados pelo ato de mover esses objetos com uma intenção – essa é uma reflexão belamente defendida por Walter Benjamin e com a qual concordo.

A chegada de Baek Heena ao Brasil não apenas nos oferece mais uma porta sensível de acesso à literatura coreana, como também despertará nos leitores brasileiros um desejo de registrar, capturar e remontar suas brincadeiras com a caixa de papelão, com a cabana de lençol e com os castelos de areia. (Luis Girão, pesquisador e tradutor)

Além dos temas profundos e reais que traz em seus livros, como as relações familiares não tradicionais, Baek Heena traz ao leitor brasileiro um novo modo de se relacionar com a composição entre palavra, ilustração e projeto gráfico, tanto pelos tamanhos de livro um pouco maiores, quanto pela força das fotografias de cenas montadas e registradas em seu ponto alto de despertar novas fabulações.

Capa do livro Balas mágicas de Baek Heena

Como a literatura coreana entrou na sua vida? O leitor chegou antes do tradutor e pesquisador?

Luis Girão – Tive meu primeiro contato com a literatura coreana em 2013, mas já a estudava desde 2006, e trabalhava como ilustrador para a Coreia desde 2010. Dois colegas de trabalho me falaram sobre o Onda, da Suzy Lee. Fui imediatamente atrás desse livro que, à época, entendia como sendo apenas "sem palavras". Porém, o que mais me intrigou foi o fato de a margem central (dobra de encadernação) interferir na construção narrativa do livro, feito em sequência de imagens com o título como único referente verbal.

Fiquei tão fascinado por aquele elemento tridimensional intervindo na composição bidimensional das páginas que comecei a estudar pessoas de fora do campo do design, no sentido da pesquisa investigativa, acadêmica. Acontece que só aquilo não me bastava: entrei em contato com a própria Suzy Lee, por e-mail, ainda em 2013. De lá para cá não deixamos de nos comunicar, e minha carreira como pesquisador é inteiramente influenciada pela obra dela. Em 2014, enquanto atuava como aluno ouvinte em disciplinas de uma pós-graduação, participei de um minicurso com a Isabel Lopes Coelho, então editora de títulos infantojuvenis na Cosac Naify, que publicava a obra de Suzy Lee à época, e fui descobrindo todo um mundo dos livros ilustrados.  

Capa do livro Onda, de Suzy Lee

Não demorou para chegar a outros títulos coreanos infantis já existentes por aqui, como Esperando mamãe, de Lee Tae-jun e Kim Dong-seong, e O guarda-chuva verde, de Yun Dong-jae e Kim Jae-hong, ambos livros ilustrados coreanos traduzidos por Yun Jung Im, minha grande e maior mestre na tradução de literatura coreana e, atualmente, minha supervisora de pós-doutorado na USP, além de conselheira nos trabalhos da ARA Cultural.

A que elementos você atribui o fenômeno de interesse dos jovens leitores brasileiros hoje pela cultura coreana? E que lugar tem os livros nessa procura?

Luis Girão – A cultura coreana vem sendo disseminada no Brasil desde a década de 2000. Destaco os anos de 2004 e 2005 como fundantes por termos testemunhado os primeiros blogs e fóruns de fãs brasileiros de músicas e dramas da Coreia por aqui - eu era um deles. 

Esse fenômeno da difusão cultural da Coreia no mundo é conhecido como Hallyu (Onda Coreana), que acontece desde a década de 1990, saindo da Coreia para a Ásia e o Ocidente, em especial os Estados Unidos. (Luis Girão, pesquisador e tradutor)

Aqui no Brasil, a literatura coreana chega primeiro na década de 1980, mas é só na década de 1990 que começamos a ter uma produção mais consistente, graças à tradução de Yun Jung Im. Mas todos os títulos coreanos publicados por aqui até os anos 2000 eram inteiramente direcionados ao leitor adulto. A chegada da literatura infantil coreana veio na mesma Onda Coreana que trouxe as músicas e os dramas, com os paradidáticos da Coleção Tan Tan, em 2006. 

A literatura coreana tem uma característica muito específica relacionada à sua crueza, ao seu modo direto de nos atingir usando as palavras e as construções sintáticas que mesclam figuras de linguagem e onomatopeias muito corporais. Não tem como ler uma obra coreana e não sentir que ela reverbera em você. Isso vale para a literatura adulta e mesmo para a literatura infantil e juvenil da Coreia. (Luis Girão, pesquisador e tradutor)

Não posso deixar de mencionar a potência das ilustrações coreanas. Os artistas plásticos coreanos que ilustravam livros de escritores na década de 1980 começaram a se destacar em feiras de arte e ilustração para crianças já nos anos 1990. A ilustração coreana não é apenas plural em abordagens e técnicas, como também maestral em narrar visualmente uma mensagem que se desenrola diante dos nossos olhos e mãos, pois sua sequência espera pela virada de página. 

A literatura coreana também valoriza aquilo que é banal ao olhar de um adulto, mas que é o centro da realidade de uma criança: os objetos esquecidos e as pequenas coisas, em suas relações íntimas e secretas. Esse olhar atento àquilo que é precioso à brincadeira e à imaginação, e que, para um adulto, é passageiro com um piscar de olhos, mas que é durativo como uma jornada inteira para a criança, transborda dos livros coreanos.

Muitas editoras apostam em livros que já são best-sellers mundiais antes de trazê-los para o país. No caso da literatura coreana, Suzy Lee é o melhor exemplo disso. Que outros autores você destaca que deveriam vir para o Brasil? 

Luis Girão – Aqui compartilho uma curiosidade: Suzy Lee iniciou sua carreira como artista de livros infantis publicando fora da Coreia. Espelho foi publicado originalmente na Itália, enquanto Onda e Sombra foram publicados nos Estados Unidos. Ela já estava em trânsito internacional no mercado editorial antes de a literatura infantil coreana, de fato, explodir. Contudo, ela é peça-chave para essa explosão. 

Na esteira de Suzy Lee, com o impacto dos livros-imagem coreanos, deparamos com autoras como JiHyeon Lee (autora do sucesso internacional Pool, apontado como um dos títulos com maior valor pago em royalties para aquisição nos Estados Unidos em 2014) e Hyewon Yum (essa última é autora de Boa noite, publicado no Brasil em 2011). 

Há ainda alguns descendentes de coreanos que moram e/ou nasceram nos Estados Unidos, como Linda Sue Park (que escreveu o título infantojuvenil Por um simples pedaço de cerâmica, publicado no Brasil em 2016) e Yangsook Choi (que escreveu e ilustrou o delicado The name jar, em 2003). 

Já nomes de autores ainda inéditos no Brasil, mas que devem chegar por aqui eventualmente, não posso deixar de mencionar Lee Geum-yi (escritora indicada ao Hans Christian Andersen 2020 e que já tem títulos publicados na França e Estados Unidos), Goh Jueng Soon (autora que produz muitos livros ilustrados anualmente, todos tratando de temas urgentes e sobre situações de perigo da infância), a polonesa Iwona Chmielewska (que mora há anos na Coreia e teve toda a sua obra publicada primeiro em coreano) e Jung Jin-ho (autor de livros ilustrados que estão ganhando o mercado internacional dado o caráter lúdico de suas narrativas).

Ilustração de página do livro Balas Mágicas, de Baek Heena

Imagem interna do livro Balas mágicas, de Baek Heena

Como descobrir novos autores da literatura coreana?

Luis Girão – No Brasil, temos cerca de 20 títulos ficcionais coreanos publicados até o momento e outros quase 70 títulos paradidáticos, das coleções Tan Tan e Eureka. Além dos nomes já citados aqui, destaco os livros ilustrados O metrô vem correndo, de Dong-Jun Shin; A história de Ppibi, de Song Jin-heon; Azul, vermelho, transpareço..., de Seonghye Hwang; e os cinco títulos que compõem a Coleção It’s Okay To Not Be OkayTemos ainda a fábula ilustrada Flora Hen: Uma fábula de amor e esperança, de Hwang Sun-mi, que se manteve na lista de livros mais vendidos da Coreia por dez anos e teve mais de 2 milhões de cópias vendidas, além de inúmeras edições no mundo inteiro. 

Já para descobrir novos nomes, sugiro conferir todas as listas de premiados do BolognaRagazzi Award, concedido anualmente na Bologna Children's Book Fair, desde 2004 - de lá para cá, poucos são os anos em que os artistas coreanos não figuram em alguma das listas, mesmo das menções honrosas. Poderia sugerir muitas fontes (sites, blogs etc.), mas quase todas são em coreano. Sendo assim, sugiro conferir também as listas bianuais do Hans Christian Andersen Awards desde 2012, quando a Coreia começou a inscrever seus escritores e ilustradores na premiação.

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As preferências por um tipo de livro ou outro, sabemos, são construídas culturalmente. Quais gêneros da literatura infantil coreana fazem mais sucesso por lá?

Luis Girão – Segundo dados coletados pela Pesquisa da Indústria de Publicações da Coreia em 2020 e divulgados em 2021, a literatura infantil representa 47,8% das exportações de literatura da Coreia – com 2.457 títulos cujos direitos foram vendidos para editoras estrangeiras na Ásia, Europa, Américas do Norte e do Sul, Oriente Médio, África e Oceania entre 2017 e 2019. 

Quase metade da literatura coreana que é exportada tem como leitores preferenciais as crianças. Uma parte desse número é representado por obras não ficcionais (informativos, paradidáticos e didáticos) e a outra parte é representada por obras ficcionais (livros ilustrados, livros-imagem, fábulas etc.). Dessa segunda categoria, há uma multiplicidade de temas e assuntos abordados pelos artistas coreanos, tanto na palavra quanto na imagem, mesmo no objeto livro. 

Não tem como escapar do peso dos contos de fada e dos contos folclóricos nos catálogos de editoras coreanas. A ligação com a tradição oral é um traço cultural da Coreia que remonta os primórdios da literatura infantil coreana. (Luis Girão, pesquisador e tradutor)

Mesmo um título como Contos da tartaruga dourada, de Kim Si-seup (publicada no Brasil em 2017), ambientado no século XVI da Coreia e apontado como texto inaugural da prosa coreana, lança luz sobre essa tradição de narrativas orais, ligadas a mitos e lendas fundacionais. Um outro gênero misto bastante comum entre os livros infantis coreanos são os abecedários literários, que ensinam a língua coreana (Hangeul) de maneira poética, seja na palavra seja na ilustração. Do ponto de vista da mensagem informada nos livros, é importante dizer que os artistas coreanos prezam por narrativas que representam um percurso de autoconhecimento, uma busca de identidade em suas personagens (humanas ou não).

Além disso, há um primado pelo silêncio e/ou síntese das palavras e das imagens, dando espaço para que as sonoridades ecoem, verbal (existem mais de 2 mil onomatopeias na língua coreana) e visualmente (um apelo aos movimentos corporais), e com isso gerando novas descobertas. E ainda os livros ilustrados que resgatam memórias sociais fortemente influenciadas por momentos históricos do passado recente da Coreia, como os períodos de dominação colonial japonesa (1910-1945) e da guerra das Coreias (1950-1953, e que resultou na separação entre Coreias do Norte e do Sul). Essa é uma característica que, confesso, sinto falta na produção infantil brasileira, dado o nosso histórico com regimes ditatoriais.

 
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