A história das crianças senegalesas que inspirou o livro 'A carta de Moussa'

06/07/2022

Diz o famoso provérbio africano que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Porém, muitas vezes, também é preciso uma criança para educar uma aldeia; para revelar as minúcias de um cotidiano frequentemente desapercebido pelos adultos. É o que nos conta a história por trás do livro A carta de Moussa, de Roser Rimbau e Rocío Araya, pela Brinque-Book; um registro sensível do dia a dia em um vilarejo senegalês que fala sobre vínculos, ancestralidade e saudades. A tradução é da poeta Nina Rizzi, autora de  A melhor mãe do mundo, publicado pela Companhia das Letrinhas.

Ilustração do livro A carta de Moussa

No livro, o leitor conhece a cidade de Thille Boubacar, no Senegal, pelo ponto de vista de uma criança

Tudo começou em 2014, quando a companhia de teatro catalã Cap de Pardals (em português, “cabeça de pardais”) conheceu a Cudaari Gandal, uma associação artística social do Senegal. O motivo do encontro era a produção de uma peça de teatro de sombras, mas acabou se desdobrando em muito mais que isso, graças às crianças. O espetáculo inspirou uma vivência artística de desenhos, que inspirou o livro, que por sua vez inspira leitores de vários cantos do mundo – do Senegal ao Brasil – a ouvir mais o que as crianças têm a dizer sobre a vida de um lugar, de um povo, de uma cultura. O Blog conversou com a escritora e jornalista catalã Roser Ribau, que compartilhou como se deu essa história.

 

O povoado senegalês e a importância de uma folha em branco

Em Thille Boubacar, uma pequena cidade no norte de Senegal com pouco mais de 1.500 habitantes, não havia um lugar físico apropriado para ensaiar e acolher as apresentações. Então, a muitas mãos, e em parceria com o grupo de arquitetos Terram, a companhia construiu um teatro feito de barro e palha. Tudo com a ajuda de algumas das 175 famílias que vivem lá.

Enquanto viam a nova construção ser erguida, as crianças locais, curiosas e atentas, rondavam o grupo, pedindo folhas de papel para desenhar. Elas também queriam contar suas histórias. Em rabiscos coloridos e desajeitados, elas registravam o que viam ao redor: o chão de terra, os longos vestidos coloridos, as mulheres que se arrumavam vaidosamente para pegar água no poço, as árvores, os coelhos, as galinhas. Não eram apenas desenhos de criança, mas sim um retrato de Boubacar pelo ponto de vista de quem a via com mais atenção que qualquer outro grupo. 

“As crianças, que dividiam o lençol com outros amigos, usaram-no para fazer um desenho e correram para devolvê-lo ao Cap de Pardals. E então, naquele exato momento, eles pediram outra folha para que pudessem desenhar novamente! Foi assim que os membros desta companhia teatral catalã descobriram a importância de ter uma folha em branco. A ideia principal do livro vem dessa situação”, relembra a autora.

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Do palco para as páginas do livro

Depois de realizarem o espetáculo no teatro de barro, era hora de transformar essa história em livro ilustrado, um trabalho feito com delicadeza por Roser e pela ilustradora do País Basco Rocío Araya. “Ficamos muito felizes em ver o estilo dela! Ela era a combinação perfeita para esse tipo de trabalho. Não foi fácil: ela teve que usar os desenhos feitos pelas crianças do Senegal, assim como os dela. E ela consegue! Rocío fez um trabalho incrível”, contou a autora do texto, Roser Rinbau.

Ilustração do livro infantil A carta de Moussa, de Roser Rimbau

O protagonista tenta reproduzir na carta ao pai os sons, cheiros e sabores do povoado em que mora

Assim nasceu La Carta, publicado em 2017, pela Editorial Takatuka, e que agora chega aos leitores brasileiros pela Brinque-Book, depois de figurar nos mais importantes prêmios da literatura infantil do mundo, como o White Ravens, em 2018, e a Seleção de 100 obras recomendadas pela Fundación Cuatrogatos, em 2019, além de integrar também o Catálogo de Literatura Infantil e Juvenil Espanhola OEPLI de 2018.

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Como desenhar um som? 

Como desenhar o cheiro das comidas, as cores da escola, o amor das mães? Essas são algumas das perguntas que faz o protagonista da história, Moussa, um menino de Thille Boubacar que quer mandar um desenho para aliviar a saudade de seu baaba (pai), que foi morar em outro país. Então, um pedaço de papel trazido pelo vento dá a Moussa a ideia de fazer um desenho, ele quer ajudá-lo a se lembrar das coisas, pessoas e lugares de seu povoado. Mas como ele pode desenhar o "tum-tump!" que se ouve quando o cuscuz está sendo preparado ou o "nhec-nhec!" da polia do poço? E o sabor da pimenta que ele adora? Por sorte, Moussa pode contar com a ajuda da amiga Mariama, que lhe ajuda nessa tarefa de transformar em retrato a cultura de sua cidade.

Toda essa dimensão afetiva dos costumes de uma cultura está presente no livro, mas, para além da história "visível" que o livro narra, há um pano de fundo que nos fala da migração, das memórias do povo e também do desenraizamento causado tantas vezes quando nos desconectamos de nossas origens. A estreita relação entre leitura do mundo e a linguagem – em que uma precede a outra, como defendia Paulo Freire – é um dos pontos centrais do livro.

A carta de Moussa é uma história que, enquanto diverte e encanta os pequenos, convida os adultos a refletir sobre a importância dos vínculos culturais e da ancestralidade a partir do olhar atento às minúcias que compõem um coletivo social. Ao final do livro, o leitor encontra um glossário para se familiarizar com as palavras africanas, como “baaba”, “neene”, “piment”, “griots” e “tubaab”.

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E é claro que um enredo inspirado em fatos reais, tão cheio de etapas e desdobramentos, não poderia parar por aí. A história de Moussa, o pequeno senegalês que desenhou sua vila para que o pai não se esquecesse de onde veio, circulou depois pela Europa, antes de voltar a Thille Boubacar, onde tudo começou. 

“A Cap de Pardals publicou uma edição muito curta do livro em francês, para não ser vendido, a fim de entregá-lo aos vizinhos de Thille. Eles ficaram muito felizes em ver seus desenhos novamente”, conta Roser. “Apresentamos o livro em escolas, livrarias e bibliotecas da Catalunha. Um palhaço, vestido de carteiro, participa da apresentação. Ele pede às crianças presentes no evento que escrevam uma carta ou desenhem algo para os filhos de Thille Boubacar. Ele prometeu trazer as cartas para eles. E ele fez! (confira as fotos que ilustram esta matéria). Todas as crianças nos escreveram de volta”, relembra Roser.

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